Mundo
Guerra por procuração
Os interesses econômicos e geopolíticos que movem as engrenagens do conflito no Sudão


Nesta noite, como em todas as outras há várias semanas, comboios de caminhões partirão pelo deserto do sul da Líbia em direção à fronteira com o Sudão, a 400 quilômetros de distância. Eles dirigirão desde o anoitecer com as luzes apagadas, na tentativa de não serem detectados. É uma operação clandestina, mas dificilmente secreta. Uma vez atravessada a fronteira, os comboios se dividirão, alguns para o sul, outros rumo ao leste.
A maioria das reportagens do Sudão até agora se concentrou nas batalhas de rua na capital, os 500 mortos ou mais e 4 mil feridos, a crise humanitária iminente e a evacuação de estrangeiros. Embora as linhas de abastecimento que atravessam o deserto sejam um detalhe no grande esquema das coisas, elas podem nos dizer mais sobre a natureza deste conflito do que reportagens emocionadas de quando os evacuados britânicos chegam ao Reino Unido ou relatórios de Washington. Os caminhões transportam combustível de uma refinaria perto da cidade-oásis líbia de Al-Jawf, bem como remessas menores de munição, armas e remédios, para as Forças de Apoio Rápido (FAR) paramilitares, que hoje combatem unidades regulares do exército sob o controle do governante de fato do Sudão, Abdel Fattah al-Burhan, na capital, Cartum. Eles são enviados por Khalifa Haftar, líder guerreiro que comanda grande parte do leste da Líbia. Outros suprimentos, incluindo potentes mísseis antitanque Kornet saqueados dos estoques do governo líbio há mais de uma década, foram transportados por via aérea, segundo testemunhas no aeroporto de Al-Jawf.
As FAR são leais a Mohamed Hamdan Dagalo (geralmente conhecido como Hemedti), ex-comerciante de camelos que começou sua carreira no comando de uma milícia notoriamente brutal no sudoeste do Sudão, antes de se aperfeiçoar no contrabando de ouro em escala industrial e no massacre de manifestantes pró-democracia. Haftar envia os suprimentos porque seus patrocinadores entre os países do Oriente Médio pediram e porque ele ganha muito dinheiro. Um senhor da guerra em um conflito ajuda outro em um segundo, a mando de um poder distante.
Califas do Oriente, traficantes, mercenários, russos, norte-americanos, chineses… Há de tudo
Este é o caminho da guerra contemporânea, como exemplificado nesta nova luta no Sudão. Neste conflito, as fronteiras não têm importância. O controle dos recursos é o prêmio principal, com forças a surgir nas fronteiras em busca de vingança contra as outrora desdenhosas elites metropolitanas. As redes de tráfico em faixas de deserto são extensões do “espaço de batalha”, e um grande número de atores com um machado para abater ou uma agenda para seguir supera em muito aqueles que tentam conter a luta. Tudo isso acontece numa penumbra sombria definida por acordos de bastidores, alinhamentos de interesses obscuros, realpolitik brutal e desinformação. Os pobres, os fracos e os desarmados sofrem mais, como sempre.
Muito disso é conhecido, claro. As fronteiras na África sempre foram porosas, como o foram por muito tempo também em outros lugares. O conflito por procuração foi uma marca registrada da Guerra Fria em toda parte e, na década de 1990, muitas batalhas em todo o mundo viram vários Estados, grandes e pequenos, apoiarem atores locais com consequências sangrentas. Os conflitos geralmente envolviam insurgentes no interior do país que eram, ao menos em parte, motivados pela sensação de que haviam sido excluídos por uma elite corrupta e decadente baseada numa capital ou em grandes cidades, como no Sudão hoje. A política sempre se mapeou na identidade quando se trata de quem luta contra quem.
As guerras que se seguiram aos ataques de 11 de setembro de 2001 da Al-Qaeda nos Estados Unidos destacaram o papel de combatentes não convencionais que só poderiam ser derrotados por meios não convencionais, e a capacidade da nova tecnologia de comunicação de favorecer grupos antes marginais, de maneira sem precedentes. A guerra na Líbia foi travada em um caos total do que ou de quem poderia ser permitido pela lei local, internacional ou simplesmente natural. O conflito sírio durou tanto tempo, com consequências tão terríveis, em parte porque atraiu tantos combatentes e patrocinadores diferentes, todos com objetivos diversos, dos quais um número cada vez menor tinha qualquer consideração pelos que eram apanhados no fogo cruzado.
Com o choque inicial do colapso em conflito aberto há duas semanas a perder força, os analistas começaram a considerar o que o futuro poderia trazer. A maioria acreditava que as chances de um fim rápido para os combates atuais eram extremamente pequenas. A esperança de muitos era que Hemedti fosse de alguma forma morto, levando à fragmentação de suas forças e à imposição de um novo regime militar autoritário que pudesse impor uma aparência de ordem. Quase todos temiam que a atual batalha binária pudesse se transformar num conflito ainda mais intratável, à medida que milícias locais baseadas em etnias ou outras identidades se juntassem à luta. Há alguma evidência de que isso está em curso nos combates entre opositores não identificados em Darfur.
Costumeiras vítimas. Mulheres e crianças são expulsas da capital Cartum. Segundo as agências humanitárias, o drama está só no começo – Imagem: Gueipeur Denis Sassou/AFP
Ninguém duvida da escala da potencial catástrofe humanitária. Um terço dos 45 milhões de habitantes do Sudão depende de ajuda humanitária para alimentação, abrigo ou cuidados de saúde. Esta não é uma população resiliente, e foi principalmente a menos necessitada que conseguiu fugir de Cartum em ônibus para a fronteira egípcia. Os próximos fluxos de refugiados serão muito maiores – centenas de milhares, possivelmente milhões – e muito mais pobres do que aqueles que fizeram fila na fronteira nestes dias. Uma parte seguirá para a Europa, mas a maioria precisará ser atendida por vizinhos que não podem cuidar de seus próprios cidadãos e muito menos lidar com um grande fluxo.
O colapso do terceiro maior país da África abalaria vizinhos frágeis, bem como uma cadeia de nações que se estende a oeste pela região profundamente problemática do Sahel, no Norte da África. Estes, como o Sudão, enfraquecido pelas mudanças climáticas e décadas de conflito, poderão se despedaçar. Isto significa que a Europa Ocidental estará próxima de uma imensa zona de conflito e caos. Não é de admirar que os diplomatas admitam em particular que enfrentamos um “cenário de pesadelo” no Leste e no Norte da África.
Uma série de atores nefastos como Haftar ou o grupo russo Wagner mantendo-se abaixo do radar, mas fazendo intervenções oportunistas e eficazes? Este tem sido o caso há anos, mas aumentou agora, durante a guerra aberta. Grande criminalidade, com redes bem entrincheiradas envolvidas em tudo, desde o narcotráfico até o roubo de valiosas antiguidades, movendo-se para explorar o caos? Há relatos de que se mobilizam para escavar em Meroe, famoso sítio arqueológico 300 quilômetros ao norte de Cartum e local de intensos combates recentes.
Esses paralelos existem não porque a Síria e o Sudão possam ser comparados diretamente, mas porque é assim que as guerras se apresentam em nossa era. Diferentes tipos de conflito coexistem, é claro – e a guerra na Ucrânia pode ser vista como o ponto culminante de uma campanha não convencional de uma década do Kremlin –, mas a ideia de que a guerra ali indicou um retorno mais geral a uma norma familiar no século passado pode muito bem estar errada.
Uma penumbra sombria cobre os acordos de bastidores, interesses obscuros, realpolitik brutal e desinformação
Os caminhões que atravessam o deserto nos contam mais. Haftar ofereceu assistência, mas equilibrou cuidadosamente sua necessidade de agradar aos apoiadores nos Emirados Árabes Unidos, parceiros importantes no negócio de ouro com Hemedti, mas sem incomodar seus outros patrocinadores no Egito, que apoiam Burhan. Daí a necessidade de manter os comboios de petróleo silenciosos e as precauções tomadas para mascarar o desvio de cerca de 10 mil barris por dia de petróleo líbio de uma empresa estatal, transformados em combustível de alta qualidade na refinaria de Al-Sarir e transportado em caminhões para as forças de Hemedti, sedentas do produto, segundo ex-autoridades líbias com acesso a arquivos de inteligência.
É claro que essa ajuda não é oferecida de graça, e o combustível é vendido e não doado às FAR, gerando grandes receitas para a família e as empresas de Haftar. Sai o ouro, entra o combustível, tudo pago em enormes transferências de dinheiro. Esta é uma expansão em tempo de guerra de uma lucrativa parceria comercial existente há uma década ou mais. Alguma lei foi quebrada? Provavelmente. Alguém pode parar o tráfico? Quase certamente não. Trará a vitória para Hemedti? Improvável. Isso prolongará o conflito? Definitivamente.
Apego. Abdel al-Burhan, ditador de fato, só pensa no próprio poder – Imagem: Ashraf Shazly/AFP
Os caminhões não se movem em um vácuo geopolítico. O apoio dos Emirados Árabes a Hemedti e Haftar baseia-se na rivalidade com outros países do Oriente Médio e em ganhos financeiros. Moscou, fiel à sua ampla estratégia de apoiar os disruptores mais óbvios para lucrar financeira e politicamente com o caos resultante, também apoia Hemedti e as FAR há anos. Aqui os russos fazem o que fizeram no Sahel e em outras partes da África: adicionam uma boa dose de desinformação à mistura sudanesa, para garantir. Eles estão interessados nas bases navais do Oceano Índico, outro eco da Síria, onde o acesso ao Mediterrâneo era uma consideração estratégica. A Arábia Saudita tem interesse em afastar rivais regionais e obter acesso aos vastos recursos agrícolas do Sudão. O Egito, sem surpresa, está interessado em um regime militar autoritário em seu vizinho do sul, então quer a vitória de Burhan. Os chineses buscam vantagem contra os Estados Unidos, votos na ONU e os elogios que vêm com uma mediação bem-sucedida. E assim por diante, em círculos concêntricos, até os europeus ocidentais, o Reino Unido e os Estados Unidos. Todos têm seus interesses, se não seus favoritos escolhidos.
Esta não é uma luta muito ideológica. Embora existam islâmicos na mistura, suas crenças são marginais aos combates atuais, quaisquer que sejam as alegações em contrário. Nem Hemedti nem Burhan se preocuparam em delinear qualquer visão política real. Os europeus e os EUA falam muito sobre valores, mas agora reconhecem que, ao menos no Sudão, a prioridade é limitar a ameaça a seus próprios interesses que o colapso total pode representar. Portanto, esta é a natureza desta batalha em particular: uma disputa extremamente violenta e caótica por vantagens táticas e estratégicas, tão brutal em nível geopolítico quanto nas ruas de Cartum, atraindo um elenco em constante mudança de jogadores, oportunistas e exploradores cínicos, cujos motivos não diferem muito, quer estejam vestidos com ternos, túnicas ou uniformes de combate. É uma guerra de senhores da guerra, grandes e pequenos, e assim, tragicamente, um conflito de nossa época. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1258 de CartaCapital, em 10 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Guerra por procuração’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.