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Guerra de palavras

A escalada retórica não muda o curso da invasão. Ou se enfrenta Putin ou se aconselha Kiev a negociar

Sem trégua. A Rússia continua a reduzir a Ucrânia a escombros, enquanto Putin ameaça o Ocidente com uma guerra nuclear - Imagem: Genya Savilov/AFP e Ministério da Defesa da Rússia
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Eles se autodenominaram Grupo Consultivo de Defesa da Ucrânia e prometeram reunir-se mensalmente até que a guerra seja vencida. Um título mais cativante e preciso seria Coalizão Parem o Vlad Louco. Certamente é assim que o presidente da Rússia, paranoico e sem amigos, verá a reunião inaugural liderada pelos Estados Unidos de 40 países da Otan e não pertencentes à Otan que se opõem à invasão da Ucrânia. Mesmo envergonhada, a China agora evita o ato de homenagem a Lavrenti Beria em Moscou.

O lançamento do grupo foi uma das inúmeras escaladas políticas, retóricas e militares recentes, por ambos os lados, que transformam rapidamente a guerra na Ucrânia em um conflito internacional completo, sem final previsível. Isso, por sua vez, levanta uma pergunta alarmante: toda essa conversa de luta, todas essas ameaças e diplomacia de risco levam inelutavelmente ao confronto nuclear?

Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, citou propositalmente essa perspectiva aterrorizante quando afirmou que a “guerra por procuração” da Otan na Ucrânia poderia desencadear uma terceira guerra mundial. Como um espião de esquina a praticar chantagem grosseira, Lavrov alegou que havia um “risco considerável” de que tal guerra pudesse se tornar nuclear. Supostamente, ele sabe disso porque Putin de fato considera essa possibilidade.

O tom dos Estados Unidos também endureceu significativamente. O presidente norte-americano, Joe Biden, disse que mantém sua promessa feita em março de que Putin “não pode permanecer no poder”. Lloyd Austin, seu secretário da Defesa, diz agora que os Estados Unidos querem a Rússia permanentemente “enfraquecida”. Nunca mais deverá ter a capacidade de ameaçar seus vizinhos, disse ele. Austin realmente espera que Putin se desarme? Apesar das negativas, essas declarações esparsas soam como uma pressão por uma mudança de regime, mesmo enquanto Biden busca um financiamento extra de 33 bilhões de dólares.

Putin aumentou as apostas de forma imprudente, ameaçando “ataques de retaliação tão rápidos quanto um relâmpago” a qualquer um que se intrometa na Ucrânia. Para marcar seu desprezo, ele bombardeou António Guterres, secretário-geral da ONU, em visita a Kiev.

A Rússia diz que pode atacar comboios de fornecimento de armas da Otan. Acredita-se que as explosões em uma região disputada da Moldávia sejam operações de “bandeira falsa” russa. Isso mostra com que facilidade a guerra pode se espalhar. De muitas maneiras, já se espalhou. Depósitos de petróleo estão em chamas no sul da Rússia. A Polônia protestou que estava sob “ataque direto” depois de Moscou bloquear o fornecimento de gás. O corte foi denunciado como um ato hostil contra a Otan e a União Europeia.

A Alemanha teme que possa ser a próxima. Berlim cedeu, no entanto, à pressão dos pares para fornecer armas pesadas a Kiev. Sanções adicionais da UE, inclusive sobre o petróleo, são iminentes. Tudo isso alimenta um incêndio em expansão.

Uma corrida armamentista nuclear global revivida se acelera

Biden insistiu repetidamente que o conflito será contido. “O confronto direto entre a Otan e a Rússia é a terceira guerra mundial, algo que devemos nos esforçar para evitar”, disse ele após o início da invasão.

Mas a guerra tem seu próprio impulso mortal. Atos diários de escalada apontam em uma direção. A Otan é como um paciente que nega a doença. A realidade, segundo muitas medidas, é que já está em guerra com a Rússia.

Talvez futuros historiadores do conflito na Ucrânia mapeiem o caminho para uma conflagração mais ampla da mesma forma que acadêmicos anteriores localizaram as origens da Primeira Guerra Mundial. Não é difícil discernir o padrão de desenvolvimento agora. Reclamação, provocação, reação, escalada, explosão. Ao contrário de 1914, ou durante a primeira Guerra Fria, não há, porém, limites ou regras acordadas nesta luta. Em todo o mundo, do Irã à Coreia do Norte, os esforços contra a proliferação falham. Os tratados de controle de armas nucleares caducam. Uma corrida armamentista nuclear global revivida se acelera.

Os planejadores militares normalizaram o uso de armas nucleares táticas de baixo rendimento (campo de batalha). A doutrina russa se reserva o direito de usar arma nuclear em resposta a ameaças convencionais, se o Estado (ou a liderança) estiver em risco. O teste pela Rússia do míssil de longo alcance “Satan II”, com capacidade nuclear, foi um aviso claro. “Dados os reveses que eles (Rússia) enfrentaram até agora militarmente, nenhum de nós pode ignorar a ameaça representada por um potencial recurso a armas nucleares táticas”, alertou o diretor da CIA, William Burns.

Está claro que o Ocidente não pode abandonar a Ucrânia simplesmente por medo de até onde Putin poderá ir. Tal colapso destruiria a ordem global, a ONU e a segurança da Europa. Quanto mais a guerra durar, no entanto, maior o risco de um tipo diferente de evento cataclísmico que modifique o mundo.

Então aqui está a opção, como dizem os ingleses do norte: urine ou saia do vaso. Ou os aliados ocidentais agem decisivamente agora para interromper esta guerra, exigindo um cessar-fogo imediato e ameaçando e, se necessário, lançando uma intervenção militar direta para garanti-lo – como foi recomendado neste espaço.

Ou, alternativamente, os falcões param de atiçar o fogo e de estabelecer metas irreais e, em vez disso, aconselham Kiev a aceitar um acordo negociado que, lamentavelmente, vai recompensar a agressão de Putin.

Muitos acham as duas opções perturbadoras. Atualmente, a intervenção forçosa da Otan para “deter o Vlad Louco” permanece improvável porque Biden, principalmente, acredita que é muito arriscada, mesmo que ele queira muito que Putin seja morto.

Ninguém em Kiev é a favor de um acordo de “paz” a qualquer preço, como descobriu Guterres. Nem Putin cederá terreno. Ao contrário, ele quer mais. Assim, com toda a probabilidade, esta guerra continuará, assassina, caótica, ruinosa, em meio ao risco sempre presente de que uma escalada descontrolada possa produzir uma catástrofe nuclear.

Como na famosa pergunta de Lenin, o que se pode fazer? •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1207 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Guerra de palavras”

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