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Guerra de palavras

A escalada retórica entre Israel e o Hezbollah levará a um conflito ampliado no Oriente Médio?

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Destruição. Gaza continua sob fogo intenso de Israel e o Irã entra na mira dos adversários do Estado Islâmico – Imagem: AFP
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Mohammad Atout, palestino morador do campo de refugiados Burj ­al-Barajneh, em Beirute, jantava com seus filhos na noite da terça-feira 2 quando se espalhou pela capital libanesa a notícia de que Saleh al-Arouri, vice-chefe do gabinete político do Hamas, tinha sido assassinado. “Alguém me disse que houve um ataque em Beirute. Momentos depois, a televisão disse que era Arouri. Então as pessoas foram para as ruas. Aquilo as atingiu com muita força. Ele era um líder importante para nós.”

No café de sua propriedade, que dá para uma rua decorada com faixas palestinas, seus clientes têm assistido ao noticiário da Al Jazeera sobre a guerra em Gaza. “Nunca pensamos que os israelenses ousariam fazer isso em Beirute”, disse Atout. Ele acredita que a razão da morte de Arouri foi o fracasso de Israel em encontrar e matar os líderes do Hamas em Gaza, entre eles o chefe do movimento, Yahya Sinwar. Ele sugere que Arouri, cujo gabinete foi atingido por mísseis, era um alvo fácil e seu assassinato foi um disfarce para o lento progresso israelita no cumprimento de seus objetivos de guerra declarados. “Esse passo surgiu da raiva pela falta de progresso. Estão tentando mostrar que conseguiram alguma coisa.” Mas o comerciante não está convencido de que a crescente escalada levará a uma guerra total entre o Hezbollah e Israel.

Essa é a questão que dominou o debate no Líbano e em toda a região nos dias que se seguiram à morte de Arouri, mesmo quando uma tênue normalidade retornou aos amplos subúrbios no sul de Beirute, reduto do Hezbollah, após o ataque. As ruas que haviam ficado vazias logo depois do atentado recuperaram o movimento, mas a ansiedade permanece. O estado de espírito foi resumido pelo primeiro-ministro cessante do Líbano, ­Najib Mikati, na sexta-feira 5. Mikati descreveu o “perigo das tentativas de arrastar o Líbano para uma guerra regional… com graves consequências, particularmente para o Líbano e os países vizinhos”.

A instabilidade aumenta com os ataques no Líbano, no Irã e no Mar Vermelho

Na manhã do sábado 6, enquanto o Hezbollah disparava dezenas de foguetes contra o norte de Israel, a primeira resposta, segundo o grupo armado, ao assassinato de Arouri, o aviso de ­Mikati adquiriu uma ressonância adicional. Os ataques transfronteiriços realçaram o fato de que, três meses depois, a guerra de Israel contra o Hamas começa a se espalhar pela região.

Desde 8 de outubro, ações limitadas através da fronteira, incluindo bombardeios e ataques de drones, tornaram-se uma ocorrência diária entre Israel e o Hezbollah, bem como outras facções do Líbano, infligindo baixas a ambos os lados. Grupos apoiados pelo Irã no Iraque intensificaram os ataques às bases militares dos Estados Unidos, enquanto os houthis do Iêmen, que, assim como o ­Hamas e o Hezbollah, há muito tempo contam com o apoio iraniano, lançaram drones de longo alcance e ameaçaram a navegação comercial em rotas importantes no Mar Vermelho. Não bastasse, o Estado Islâmico assumiu a responsabilidade por duas explosões que atingiram uma multidão no sul do Irã, matando pelo menos 84 cidadãos, enquanto um ataque aéreo dos Estados Unidos em Bagdá matou o comandante de uma milícia xiita apoiada pelo Irã.

Foi principalmente no Líbano que a situação se tornou mais perigosa, minando um frágil entendimento entre o ­Hezbollah e Israel que persistia desde a extremamente destrutiva segunda guerra do Líbano, em 2006. Quando o secretário-geral do Hezbollah, Hassan ­Nasrallah, fez dois discursos transmitidos pela televisão nacional após o assassinato de Arouri, referiu-se especificamente, e não pela primeira vez, às “regras” que atenuaram a violência muitas vezes escandalosa entre os dois lados. Entre ameaças e retórica, essas regras há muito definem até onde cada lado está disposto a ir em termos de seleção de alvos, ou em atos de retaliação, ao mesmo tempo permanecendo aquém de uma guerra total.

Em toda a região, nas áreas onde o conflito de Gaza se alastrou, a guerra de Israel com o Hamas serviu para energizar as tensões preexistentes. No Líbano, a questão tem sido o fracasso de ambos os lados em implementar a trégua imposta pela ONU que pôs fim à guerra de 2006 e que deveria provocar a retirada dos combatentes do Hezbollah da fronteira. O que está claro é que a morte de Arouri levou ao limite esse “equilíbrio da dissuasão” mútuo, para usar a expressão de ­Nasrallah, após o primeiro ataque israelense à capital do Líbano desde 2006.

Reação. Os rebeldes houthis atacam navios no Mar Vermelho em resposta ao massacre dos palestinos – Imagem: Muhammed Huwais/AFP

Embora alguns tenham argumentado que o assassinato de um alto funcionário do Hamas, em vez de uma figura do ­Hezbollah, permite ao grupo libanês alguma margem de manobra, na sexta-feira 5, Nasrallah reiterou pela segunda vez em três dias que agora seu grupo é obrigado a retaliar, acrescentando que, caso contrário, todo o Líbano ficaria vulnerável a ataques israelenses. “Não podemos ficar calados sobre uma violação dessa gravidade”, disse, “porque isso significa que todo o nosso povo ficará exposto. Todas as nossas cidades, aldeias e figuras públicas estarão expostas.” As repercussões do silêncio, acrescentou, seriam “muito maiores” do que os riscos de retaliação. Uma resposta é agora inevitável, insistiu.

Enquanto Nasrallah falava, suas palavras eram, porém, medidas por analistas, autoridades e jornalistas para sopesar a retórica contra a intenção. Para determinar se, como muitos sugeriram nos últimos três meses, o Hezbollah de fato tenta evitar um confronto em grande escala. Os analistas preferem deixar de lado o assassinato de Arouri e ver o conflito limitado em torno da fronteira como uma negociação sobre questões não resolvidas da guerra de 2006, com o próprio Nasrallah a sinalizar, talvez de modo significativo, que o Hezbollah está aberto a uma “solução” assim que a guerra em Gaza terminar, apresentando-a como uma “oportunidade histórica” para recuperar o território há muito ocupado por Israel.

Assim como a “kremlinologia” da Guerra Fria, desvendar as cuidadosas ambiguidades de Nasrallah é uma arte e uma ciência. Ele estava sorrindo mais?, perguntaram alguns recentemente, enquanto outros tentavam identificar o público das diversas partes de sua mensagem. O discurso sobre uma solução foi dirigido aos Estados Unidos, para sugerir que o Hezbollah é pragmático? A ­Israel? Estaria ele a falar apenas em nome do Hezbollah, ou de um conjunto mais amplo de atores pró-Irã, ao esboçar uma visão do futuro da região com a redução da influência norte-americana?

Os riscos de uma conflagração regional aumentaram neste início de ano

Para Sanam Vakil, diretora do programa de Oriente Médio e Norte da África na Chatham House, o retorno de surpresa do enviado especial dos Estados Unidos a Beirute, Amos Hochstein, sinalizou a possibilidade de que, por trás da violência na fronteira e dos rumores de uma guerra mais ampla, haverá esforços para se encontrar uma saída mutuamente aceitável. Uma solução para “salvar as aparências” pode estar em preparação, acrescentou, o que levaria ambos os lados a se afastar do abismo, mesmo que o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, tenha dito a ­Hochstein que a janela para uma solução diplomática é pequena e fica cada vez menor.

Uma escalada, diz Vakil, não é do interesse do Hezbollah nem de Israel. “A grande diferença entre o que aconteceu depois de 7 de outubro e a guerra de 2006 é que o Hezbollah mudou seu cálculo e seu apetite pelo risco… Tem muito mais a perder agora. O Hezbollah tornou-se muito mais um ator institucional fundamental num sistema político libanês que é muito frágil. Não pode ser visto como o gatilho do colapso formal do Líbano. Como ele deixou de ser um ator não estatal para se tornar parte do Estado, há necessidade de prestar contas.”

Também do lado israelense, apesar de toda a conversa sobre estados elevados de prontidão militar e a capacidade declarada de lutar em duas frentes, o consenso emergente é de que o país, em meio ao grave impacto econômico e social causado pelo 7 de outubro e à subsequente guerra contra Gaza, também preferiria evitar um conflito ampliado.

Em contraposição a essa análise, entretanto, há outros fatores. Os combates na fronteira deslocaram dezenas de milhares de evacuados de ambos os lados, e o próprio fato de o conflito, sem fim à vista, neste momento, correr o risco de criar uma dinâmica própria. A transformação do norte de Israel em uma zona vazia e militarizada, que sofre explosões diárias, cria um ímpeto político crescente para resolver o problema da fronteira norte com o Líbano, seja com um acordo negociado, seja por meios militares.

Impasse. Nasrallah, líder do Hezbollah, entre a pressão interna e a realpolitik – Imagem: Gabinete de Ali Khamenei

Ao longo dos últimos três meses, o âmbito geográfico dos ataques, ao menos do lado israelense, penetrou cada vez mais profundamente no sul do Líbano. O fato de Nasrallah ter sentido necessidade de falar duas vezes sobre o assunto no espaço de três dias salientou tanto o sentido de urgência da resposta do Hezbollah quanto a pressão que o assassinato de Arouri impôs ao movimento. Nasrallah teve de justificar explicitamente os riscos que o Líbano enfrenta e que benefícios esses riscos podem trazer. “O Hezbollah tem de responder rapidamente, porque no contexto de uma guerra é preciso restaurar o equilíbrio da dissuasão”, contextualizou Amal Saad, especialista no grupo, ao ­Financial Times, acrescentando que é necessário abranger “uma abordagem qualitativa da escalada em termos de alcance e intensidade, mas ficar aquém de uma guerra de alta intensidade”.

E se a postura militar e diplomática representa ou não, em última análise, apenas uma negociação perigosa, o que está claro para muitos é o risco de um “erro de cálculo” fatal por algum dos lados que não possa ser previsto pelos planejadores militares de Israel em Tel-Aviv nem por Nasrallah e seus assessores.

Em seu café, no sábado de manhã, Atout refletiu sobre a resposta emergente do Hezbollah. “Os países árabes não estão fazendo nada pelos palestinos. Só temos Deus, nós mesmos e os xiitas que lutam em nosso nome. Onde quer que haja xiitas, como o Hezbollah, há gente ativa.” E, ao menos por enquanto, a realidade das ações transfronteiriças tem uma clareza maior que a retórica que as envolve. •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 17 de janeiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Guerra de palavras’

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