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Cessar-fogo ou pausa humanitária? O mundo tagarela, enquanto Gaza é reduzida a escombros

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Quase metade das mais de 10 mil vítimas em Gaza são crianças – Imagem: Mahmud Hams/AFP
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A maior parte do mundo concorda que a intensidade do ataque de Israel a Gaza, embora dirigido ao Hamas, tem causado uma dor insuportável à população civil, que sofre bombardeios aéreos e a falta de alimentos, água e medicamentos. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, principal diplomata do mais fiel aliado de Israel, transmitiu uma mensagem pessoal­ em Tel-Aviv: é preciso fazer mais para “proteger os civis palestinos” encurralados depois que Israel sitiou o território.

Se há, porém, um amplo consenso de que um número excessivo de inocentes em Gaza morre diariamente, ou fica ferido, doente, com fome e sede, há um forte desacordo sobre o que deve ser feito para aliviar a agonia e como estruturar e descrever uma pausa nos combates. Blinken e os principais aliados israelenses pedem uma “pausa humanitária”, uma interrupção dos combates para permitir a entrada de ajuda no território. As principais organizações humanitárias, especialistas da ONU e países com tradição pró-Palestina apelaram a um cessar-fogo. Houve ainda pedidos de uma trégua humanitária, uma desescalada, um cessar-fogo humanitário e a cessação das hostilidades – uma proliferação de termos que tornou o debate acirrado ainda mais confuso.

Todos envolvem uma pausa nos combates para que a ajuda humanitária possa chegar a Gaza. A discussão é sobre quanto tempo essas interrupções devem durar e em que termos devem ser feitas. Os defensores de diferentes opções atacaram-se ferozmente, trocando acusações de cumplicidade no terrorismo, crimes de guerra e assassinato de civis. É um debate ainda mais confuso pelo fato de não existir uma definição legal formalmente acordada de cessar-fogo ou de pausa humanitária. “A diferença entre os dois é mais política do que jurídica”, disse Helen Duffy, professora de Direito Internacional Humanitário e Direitos Humanos na Universidade de Leiden, na Holanda.

O fim do conflito protegeria a todos, palestinos e israelenses, defende o papa Francisco

Para muitos, o cerne da disputa é se e como os militares de Israel devem continuar a perseguir o Hamas em Gaza, após os ataques do grupo militante a Israel em 7 de outubro, nos quais mais de 1,4 mil cidadãos foram massacrados, a maioria dos quais civis, mortos em suas casas, nas ­ruas e num festival de música jovem no deserto. “O cessar-fogo ou a cessação das hostilidades sugerem um acordo que é, ou ao menos poderia ser, um fim permanente das hostilidades, e o acordo de cessar-fogo sugere negociação, é claro”, disse Duffy. “Já a ‘pausa humanitária’ manda uma mensagem clara de que é temporária e tem um único objetivo.”

Aqueles que se opõem ao cessar-fogo dizem que Israel tem necessidade urgente de se defender de um grupo que ameaçou novos ataques a civis, nega o direito de existência de Israel e foi oficialmente designado uma organização terrorista por países como os Estados Unidos e o Reino Unido. “Um cessar-fogo agora deixaria o Hamas no lugar, capaz de se reagrupar e repetir o que fez em 7 de outubro”, disse Blinken em entrevista coletiva no sábado 4.

Aqueles que exigem um cessar-fogo dizem que uma pausa humanitária não oferecerá o tempo e a segurança ideais para satisfazer até mesmo as necessidades civis básicas, dada a escala de danos, mortes e privações em Gaza, após um mês de intensos combates. “Nossa posição é que o cessar-fogo é imperativo para lidar com as consequências humanitárias desta crise”, disse a jornalistas o ministro das Relações Exteriores do Egito, Sameh Shoukry, ao lado de Blinken.

A organização de direitos humanos Anistia Internacional está entre os grupos que apelam a um cessar-fogo. Os danos causados à infraestrutura e ao fornecimento de água aos hospitais, bem como aos estoques de suprimentos médicos e alimentares, exigem tempo e a garantia de que os trabalhos de reparação não serão novamente atacados. “Se pararmos os combates por algumas horas ou dias, seria insuficiente, dada a escala das necessidades em Gaza”, afirmou o gestor de resposta a crises da Anistia Internacional no Reino Unido, Kristyan Benedict. “É necessário um cessar-fogo duradouro e negociado para obter ajuda, alimentos, medicamentos e água, para ­evacuar aqueles que necessitam de tratamento médico e reparar infraestruturas, especialmente hospitais e abrigos que foram bombardeados. Não se pode fazer isso em questão de horas ou dias. É preciso ter certeza para poder reconstruir.”

O papa Bento XVI acrescentou que qualquer cessar-fogo abrangeria todas as partes, não apenas Israel, pelo que também protegeria os cidadãos israelenses de ataques com foguetes originários de Gaza.

A superar a lacuna estão os pragmáticos, segundo os quais uma pausa humanitária deve ser apoiada como primeiro passo para salvar vidas antes de um acordo mais permanente. Peter Ricketts, ex-conselheiro de segurança nacional do ex-primeiro-ministro britânico David ­Cameron, disse: “Há algum sentido em pedir um cessar-fogo? Se você quiser assumir uma posição de princípio, então, sim, com certeza. Se o seu interesse está em propostas práticas como um primeiro passo para um cessar-fogo, então uma pausa humanitária tem de ser a prioridade”. O Grupo Internacional de Crise fez um apelo semelhante. “A melhor opção agora é os Estados Unidos e seus aliados pressionarem Israel para que interrompa o bombardeio, cumpra sua promessa de permitir o acesso humanitário a Gaza e estabeleça condições para um cessar-fogo permanente, inclusive para a reconstrução de Gaza.” •


Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Publicado na edição n° 1285 de CartaCapital, em 15 de novembro de 2023.

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