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Guerra ao terrorismo empurrou os EUA para o fracasso

As baixas em batalha das forças de segurança afegãs aproximam-se da insuportável média de 10 mil por ano

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Dezoito anos. A guerra ao terror começou no dia 14 de setembro de 2001 com a aprovação no Congresso americano de uma lei de “autorização de uso da força militar” apenas com 60 palavras, a que se seguiu a invasão do Afeganistão, depois o Iraque, depois o Iêmen, a Líbia, o Paquistão, a Síria… Depois, enfim, todo o Oriente Médio. Esta é a guerra mais longa, mais cara e mais abrangente que os Estados Unidos travaram ao longo da sua história. O mapa geográfico de todas as operações contraterroristas levadas a cabo pelo exército dos EUA abrange 80 países, 40% das nações do planeta. Quando chamaram guerra global ao terrorismo, estavam a falar a sério.

Há nesta guerra várias datas que competem entre si como fundamentais. A primeira talvez seja a de 20 de março de 2003, dia em que começou a guerra no Iraque. Essa invasão assinala a mais profunda quebra de confiança da comunidade internacional na liderança americana: o casus belli invocado iria se revelar um embuste.

O outro momento que tem lugar garantido na história da guerra é o de 28 de abril de 2004, dia em que a cadeia de televisão CBS News revelou as primeiras fotografias da prisão de Abu Ghraib. Nesse dia o mundo soube que o exército dos EUA torturava e maltratava cruelmente os seus prisioneiros. O nome da prisão se converteria em símbolo de ocupação e a tortura ali praticada constituiria o mais sério dano moral causado à credibilidade global de Washington. Consideradas em conjunto, as duas datas assinalam o momento da tragédia americana no Grande Médio Oriente.

O balanço e a reflexão sobre a guerra ao terror obriga-nos, no entanto, a regressar à primeira iniciativa militar deste conflito – a invasão do Afeganistão em 7 de outubro de 2001. Dezoito anos depois, o governo de Kabul não consegue sequer pagar o seu orçamento militar. As baixas em batalha das forças de segurança afegãs aproximam-se da insuportável média de 10 mil por ano e o território controlado pelos talebans não para de aumentar.

O exército dos EUA, que costumava divulgar esses números, deixou de contar. Dezoito anos depois, centenas de toneladas de bombas depois, dezenas de milhares de baixas depois, milhares de milhões de dólares depois, os americanos encontram-se finalmente no sítio onde não se encontravam desde os Acordos de Paris com os vietnamitas – à mesa de negociações com os talebans. Dezoito anos atrás um enfatuado general Tommy Franks era aplaudido como brilhante estrategista: ele tinha “derrotado os talebans em poucas semanas”.

O seu livro de memórias American Soldier foi um sucesso editorial e o presidente homenageou o general na Casa Branca afirmando que a história lhe reservará o titulo de “libertador”. O livro parece hoje esquecido, os elogios parecem ridículos e a retórica política soa a pura fanfarronice. Na verdade, 18 anos depois, este é talvez o primeiro momento de lucidez. A guerra não pode ser ganha. Ela carrega consigo a maldição das guerras de ocupação – não dependem do poderio dos exércitos convencionais nem da superioridade tecnológica militar. Agora, como antes em Saigon, o jogo parece resumir-se à forma de encenar a saída. Se esta guerra se destinava a fazer esquecer a do Vietnã, 18 anos depois está muito parecida com ela.

Agora, como antes em Saigon, o jogo parece resumir-se à forma de encenar a saída militar

Na perspetiva histórica dos impérios, a Guerra do Iraque, tal como a do Afeganistão, não passa de small wars. Duas das inúmeras guerras a que hoje chamamos de assimétricas (antes eram revolucionárias ou subversivas) e que ao longo da segunda metade do século XX opuseram populações locais e ocupantes, com estes últimos apelidando os primeiros de insurgentes (antes, simplesmente terroristas). Estes “pequenos conflitos” aparecem normalmente associados aos primeiros sinais de desgaste e de cansaço: a periferia deixa de obedecer e o centro imperial sente-se impelido a utilizar a força onde antes o esforço de persuasão seria bastante.

Foto: Jim Hollander/AFP

As diferentes intervenções militares dos EUA enquadradas na genérica guerra ao terror iniciada em 2001 transformaram o Grande Médio Oriente na região mais instável do planeta e, em todos os países onde entrou, comprometeu a paz e a estabilidade política, deixando um rastro de caos, destruição e sofrimento. E muito, muito ressentimento. Qualquer que seja o ponto de vista de análise há muito que Washington (e de certa forma, o Ocidente) está a perder esta guerra: nunca houve tanto terrorismo como agora, nunca houve tantos refugiados como agora, nunca houve tanto ódio à América como agora.

O império americano nasceu e cresceu em negação. Reinhold Niebuhr escreveu em 1960 que a nação “freneticamente evita o reconhecimento imperial que de fato exerce”. A sua mais bonita tradição política sempre reservou palavras amargas à tentação imperial, vista como fonte de arrogância e ameaça aos valores republicanos. Os estadistas dos EUA, os seus estrategistas, os seus diplomatas e os seus aliados fazem o que podem para evitar o nome império. Supremacia, hegemonia, liderança – tudo, menos império. Mesmo assim é difícil arranjar outra palavra para um país que mantém 1 milhão de homens em uniformes em quatro continentes, que detém esquadras armadas em todos os oceanos e tem mais de 800 bases militares em todo o mundo, além de ser também a nação com maior influência nas organizações internacionais que cuidam do comércio e das finanças mundiais.

O que vai acontecer, no seguimento desta guerra, dependerá em grande medida, não do seu poder militar, que mostrou os seus limites, mas da capacidade de recuperar o prestígio de outrora. Esse é o desafio das próximas eleições. Os EUA têm contas a ajustar consigo próprios.

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