Mundo
Gritos por socorro
Força-tarefa de Chicago, nos EUA, tenta salvar vidas em meio à epidemia de overdoses por fentanil


Houve um tempo em que Gail Richardson achava difícil passar pelo traficante de heroína que ficava numa esquina movimentada do West Side de Chicago sem comprar uma dose. Ela passou metade da vida se drogando, traficando cocaína e heroína para sustentar o vício e depois cumprindo uma longa pena numa prisão federal. Agora, a mulher de 67 anos voltou às mesmas ruas, onde às vezes cumprimenta rostos conhecidos dos velhos tempos, ainda sob o peso do vício. Mas agora Richardson está “limpa” e se dedica a salvar vidas, enquanto as mortes por opiáceos aumentam nas comunidades negras que, segundo se pensava, haviam escapado da mais grave epidemia de drogas da história dos EUA.
“A droga mudou. Naquela época, a heroína não fazia você se dar tapas na cabeça. Naquela época, não tinha o fentanil tentando matá-la”, diz ela. Richardson e o traficante, um homem de 30 anos e barba rala, trocam olhares. Ele caminha sob o elevado do trem próximo à estação Pulaski, enquanto Richardson aborda seus clientes. Ambos sabem o que o outro faz ali. O traficante vende drogas que transformaram o West Side no que o governador de Illinois, J.B. Pritzker, descreveu como o epicentro da crise dos opiáceos no estado. Richardson tenta manter os clientes vivos, distribuindo um medicamento, a naloxona, que em poucos segundos pode reanimar pessoas que tiveram overdose e estão à beira da morte.
Richardson coloca seus anos de experiência no tráfico para auxiliar a força-tarefa de heroína/opioides do West Side, criada em resposta ao aumento de mortes por drogas nos bairros negros de Chicago. As overdoses mataram mais de 1 milhão de americanos desde o fim dos anos 1990. Os números aumentaram nos últimos anos com o fentanil, opioide sintético até cem vezes mais poderoso que a morfina. A droga é popular entre os cartéis por sua força, que permite fabricá-la em quantidades muito menores, mais fáceis de contrabandear para os EUA. Em seguida, é misturada com heroína, cocaína e metanfetamina para aumentar seu poder e valor. Mas, com a destrutiva mistura, é muito mais fácil sofrer uma overdose.
O fentanil foi responsável pela maioria das overdoses que mataram um recorde de 110 mil americanos no ano passado. A droga é a principal causa de morte de adultos americanos com menos de 45 anos – mata duas vezes mais pessoas jovens do que a Covid no auge da pandemia. Um estudo publicado na revista Lancet em 2022 previu que os opiáceos vão ceifar mais 1,2 milhão de vidas nos EUA e no Canadá até o fim da década.
O opioide sintético é cem vezes mais poderoso que a morfina e tem sido misturado à heroína
Keith Davis é outro ex-usuário de heroína que trabalha com a força-tarefa, distribuindo naloxona e tiras de teste para detectar fentanil e xilazina, um poderoso sedativo também conhecido como tranq. A poucos passos de distância, os clientes falam com um jovem, que sinaliza com as mãos para o vendedor e o produto chega. “No fim dos anos 1980 e início dos 90, quando tomávamos droga, era relaxante. Era como fazer surfe, curtir uma onda. Era legal. Mas essa merda agora, meu Deus! Ver os efeitos que isso tem nas pessoas me faz lembrar de quando eu fumava PCP (fenciclidina). As pessoas se batiam. Muito violento. Agitado”, diz Davis.
Durante algum tempo, parecia que muitas comunidades negras eram menos afetadas pelos opiáceos do que outras partes dos EUA. O aumento das mortes na década de 2000 atingiu mais duramente as comunidades rurais brancas, alvos da indústria farmacêutica. Estados como a Virgínia Ocidental tinham taxas maiores de trabalho manual e, portanto, maior demanda de analgésicos prescritos. Marjorie Gondré-Lewis, professora de anatomia na Faculdade de Medicina da Universidade Howard e coautora de um estudo recente sobre overdoses de opiáceos nas comunidades negras, diz que o racismo também desempenhou papel decisivo. Estudos mostram que os pacientes negros tinham menor probabilidade que os brancos de receber prescrição de opiáceos, devido a preconceitos de alguns médicos, para quem os afro-americanos são mais propensos a abusar de drogas ou têm maior tolerância à dor. “Alguns médicos acham que os negros não sentem dor da mesma forma que os brancos. Se uma pessoa chega e reclama de dor, é menos provável que lhe deem uma prescrição de opiáceo ou morfina”, comenta.
Se isso proporcionou algum alívio à crise dos opiáceos prescritos, o ressurgimento da heroína e a chegada do fentanil em meados da década de 2010 mudaram dramaticamente o panorama. Em 2015, a heroína ultrapassou os analgésicos prescritos como principal causa de mortes por overdose. No ano seguinte, o fentanil ultrapassou ambos. Desde então, as mortes por overdose de negros em Illinois aumentaram três vezes mais rápido do que as de brancos. O estado tem a maior proporção de mortes de afro-americanos por opiáceos do país e as drogas matam hoje mais pessoas em Illinois do que homicídios ou acidentes de trânsito somados.
Os investigadores dizem que o aumento das mortes por overdose nas comunidades negras é, em parte, impulsionado por uma mistura de drogas mais perigosa, mas também pelo aprofundamento de questões sociais, como o crescimento do número de pessoas sem moradia. Isso foi agravado pela pandemia do Coronavírus, que aumentou o isolamento e cortou o apoio daqueles em tratamento. O fentanil representa ainda um perigo particular para uma geração mais velha de homens negros que usaram heroína durante décadas e sabiam o quanto poderiam tolerar a droga sem ter overdose, mas não podem mais usá-la com segurança por causa da mistura.
Redução de danos. A naloxona, conhecida pelo nome comercial Narcan, tem sido utilizada para neutralizar os efeitos do opioide em situações de emergência – Imagem: iStockphoto e Des Moines Public Schools
Richardson, Davis e seus colegas da força-tarefa montaram uma mesa com naloxona, conhecida pela marca comercial Narcan, na parte inferior da escada da estação Pulaski, em frente a uma loja de bebidas no bairro de West Garfield. Eles penduraram uma placa: “Eu tenho Narcan. Sou treinado para ajudar numa overdose. Por favor, peça a minha ajuda!” Agora que está do outro lado, Richardson preocupa-se com o risco que os compradores de drogas passam: “A maioria deles sabe que há fentanil na droga. É por isso que eles vêm buscar o Narcan”.
Luther Syas, diretor de divulgação da força-tarefa, diz que também observou uma mudança entre alguns usuários de drogas. “Muitos optam pelo fentanil porque acham que podem controlar, enquanto dizem que uma pessoa que teve uma overdose, ou até mesmo morreu, não sabia controlar. Não é verdade, mas eles dizem isso”, diz ele.
Uma mulher de 20 anos chamada Natasha está agachada, encostada num muro no bairro de Austin. Ela não procura fentanil, mas diz que precisa de uma dose de heroína e imagina que qualquer coisa que comprar virá acompanhada do opioide mortal. A jovem é calorosa e fala baixo, mas parece exausta. Espera alguém que, segundo diz, lhe deve dinheiro, que ela planeja gastar em drogas. É um risco que ela pensa que pode enfrentar. “Não vou usar aqui. Vou voltar (para casa). Temos Narcan.” Natasha conhece, porém, um jovem que teve uma overdose e morreu num apartamento em seu quarteirão. “Não sei se ele tinha Narcan.”
É por isso que Richardson e os demais integrantes da força-tarefa estão nas ruas quase todos os dias, abordando qualquer pessoa que pareça buscar droga. Um homem de 20 anos diz a ela que não é usuário, mas gastou seu suprimento do antídoto para salvar a vida de uma mulher que ele viu tendo uma overdose num beco, algumas semanas antes. Pouco tempo depois, Richardson aproxima-se de um homem que parece mal. Ele diz que quer sair das drogas, mas que tem uma prioridade mais imediata: “Preciso tirar minha doença”. Precisa de uma dose porque está sofrendo sem ela.
O fentanil provocou a maioria dos casos de overdose que mataram 110 mil americanos em 2022
A força-tarefa de heroína/opioides do West Side, financiada pelo governo de Illinois, recruta usuários de drogas em recuperação, como Richardson e Davis, para oferecer Narcan e ajudar na divulgação do tratamento, porque eles estiveram lá e são conhecidos na comunidade. “Tenho de contar minha história muitas vezes, porque isso pode ajudá-los a entrar na reabilitação”, diz Richardson. “Digo a eles que estive no West Side toda a minha vida. Eu era traficante e usuária de drogas. Cheirava heroína. Cinco gramas por dia. Meu vício custava 500 dólares por dia.”
Por duas décadas, Richardson teve emprego fixo na companhia telefônica Illinois Bell. Sua dependência da heroína tornou-se tão evidente que seus chefes tentaram encaminhá-la para a reabilitação, mas ela não quis ir. Aposentou-se precocemente e virou traficante. A mulher instalou-se numa esquina do bairro de Austin, mas não sabia o que estava fazendo. Então, o traficante que se dizia dono da área chegou. “Ele disse: ‘Você quer ser um avião? Você traz os pacotes e os distribui, e nós lhe pagamos 500 dólares por semana. Cada saco de droga aberto é seu à noite’.”
“Plim, uma luz acendeu-se. Eu ganho toda essa droga de graça. Depois disso, fiquei bem conhecida no West Side, me associei a vários traficantes. Não queria saber nada de tiroteios. Não falem disso perto de mim. Só estou aqui para fazer o meu trabalho e ir embora”, relata. Mas Richardson sabia, e sete anos nessa vida cobraram um preço elevado. A polícia estadual estava de olho. “Me pegaram com 1 quilo de cocaína e 500 gramas de heroína, dentro de casa. Eu tinha armas. Uma garota branca comprava armas para nós. Pagávamos com droga.”
Os promotores pediram 30 anos de prisão. Richardson teve sorte de sair com uma sentença de 15. “O juiz fez um discurso que nunca vou esquecer. Observou que trabalhei toda a minha vida, percebeu que eu caí na armadilha das drogas. ‘Não posso dar a ela 30 anos. Não acho que mereça’. Deu 15 e me desejou sorte. Lágrimas rolaram dos meus olhos.”
Ainda assim, 15 anos é muito tempo. Hoje em dia, Richardson reconhece que foi mais difícil para seu filho, que era adolescente quando ela partiu. “Eu o fiz passar por traumas. Não pensava em tudo isso, era egoísta.” A mulher foi libertada em 2016, pouco antes de completar 13 anos de prisão, e retornou para o mundo com mudanças drásticas.
Diante da estação Pulaski, Richardson aborda um homem de gorro, com olhos vidrados e balbuciando. Ele parece de meia-idade, mas é mais jovem. Ela pergunta qual é a sua história e o homem diz que um dos motivos pelos quais usa drogas é para aliviar a dor de viver na rua. Richardson diz ao homem que pode levá-lo para um abrigo do Exército de Salvação e ajudá-lo a se livrar do vício. Demora um pouco, mas ela insiste, cutucando-o gentilmente com suas próprias histórias, até que eles partem juntos para o que ela espera ser o primeiro passo para a liberdade da heroína. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.