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Geringonça alemã

Em Unterleuten, romance ­best-seller da escritora alemã Juli Zeh, os habitantes de uma aldeia perto de ­Berlim ficam chocados ao descobrir que um terreno à sua porta foi reservado para um gigantesco parque eólico. Um dos personagens, um observador de pássaros chamado Gerhard Fliess, sabe […]

Partida. Scholz, à frente do grupo, tem a alternativa de mimetizar Angela Merkel
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Em Unterleuten, romance ­best-seller da escritora alemã Juli Zeh, os habitantes de uma aldeia perto de ­Berlim ficam chocados ao descobrir que um terreno à sua porta foi reservado para um gigantesco parque eólico. Um dos personagens, um observador de pássaros chamado Gerhard Fliess, sabe o que fazer: liga para um velho amigo do Ministério do Meio Ambiente local para lembrar-lhe que o campo ao redor de Unterleuten é o habitat de uma espécie em extinção de maçarico. Certamente, isso vai deter as escavadeiras. Seu amigo no ministério tem, no entanto, ideias diferentes. “E daí?”, comenta ironicamente. “Isso é o futuro.” A política verde feita na Alemanha não significa mais apenas proteger as aves pernaltas em nidificação, mas liberar negócios para construir, construir, construir.

A saga da aldeia de Zeh, publicada em 2016, mas recentemente transformada em um drama para a televisão, pode ser uma leitura profética, pois a Alemanha entra na era pós-Merkel sob um novo governo. Vistos de fora do país, os três partidos que provavelmente preencherão as cadeiras do governo a partir da segunda semana de dezembro formam uma combinação estranha, mesmo para os padrões centristas da política de coalizão alemã.

Enquanto o Partido Social-Democrata (SPD) do futuro chanceler Olaf Scholz mostrou sua flexibilidade ideológica como parceiro júnior dos conservadores de Merkel em três de seus quatro mandatos, as duas legendas menores entram no governo com agendas que parecem quase diametralmente opostas: um Partido Verde que promete proteger o meio ambiente da indústria suja da Alemanha e um Partido Democrático Livre (FDP) que quer libertar a indústria de regulamentações onerosas. “Os três concordam claramente que querem ver mais progresso, mas não apontam necessariamente na mesma direção”, disse Wolfgang Merkel, cientista político da Universidade Humboldt, em Berlim. “O que é certo é que haverá colisões de interesses ao longo do caminho.”

Com seu líder Christian Lindner instalado no Ministério das Finanças, o FDP, avesso ao déficit público, terá um veto de fato sobre os planos de gastos dos dois partidos de centro-esquerda. Agendas conflitantes significam que o próximo governo da Alemanha parece prejudicado em áreas como a reforma tributária, onde o SPD e os Verdes querem aumentar os impostos e o FDP, reduzi-los. Como resultado, eles se sentirão pressionados a desencadear uma enxurrada de atividades nas áreas em que suas ideias de mudança se sobrepõem.

Os três partidos querem liberalizar leis de cidadania arcaicas, agilizar a imigração, melhorar os direitos de gays e transgêneros, reduzir a idade de direito ao voto para 16 anos e legalizar o uso recreativo da cannabis. Iluminada por esse governo de “semáforo”, a Alemanha pode, finalmente, corresponder ao rótulo de liberal que costumava ser associado ao nome de Merkel no exterior, mas nem tanto em casa.

O aumento dos impostos e regras ambientais rígidas dividem a coalizão

Em outras áreas, isso pode significar simplesmente reduzir a burocracia para acelerar mudanças estruturais, sem ter de ir muito fundo nos cofres do Estado. O acordo de coalizão de 173 páginas contém variações do termo “não burocrático” ou “desburocratizante” a cada três páginas e promete “remover todos os obstáculos e barreiras”, para garantir que as energias renováveis respondam por 80% da demanda bruta de eletricidade até 2030. Nas mãos do FDP liberal, o Ministério da Justiça vai considerar sua tarefa facilitar esse processo.

Tanto os Verdes quanto o FDP estiveram no governo antes: o partido ecológico atuou como parceiro júnior dos social-democratas de Gerhard Schröder de 1998 a 2005, e os liberais dividiram o poder com os democrata-cristãos de Merkel de 2009 a 2013. Mas a perspectiva de ambos os partidos mudou consideravelmente desde então, e eles usarão os próximos quatro anos para mostrar como. O Partido Verde não apenas dobrou seu número de integrantes, como também abandonou suas raízes pacifistas em política externa. A nova ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, sinalizou um curso mais conflituoso com a China e a Rússia. O acordo de coalizão pede que Bruxelas adote uma postura mais dura em suas batalhas de estado de direito com países como Polônia e Hungria, e apoia a aquisição de drones armados para os militares.

O FDP, enquanto isso, empurrou suas tendências libertárias para a periferia do partido. “Eles deixaram de ser um partido neoliberal focado puramente na economia para voltar a falar mais sobre liberdades civis e digitalização”, disse ­Andrea Römmele, professor de Comunicação Política na Escola Hertie, em Berlim. “Eles começaram a desempenhar esse papel durante a crise do ­Coronavírus e tudo correu bem.”

Foi-se o tempo do genscherismo, quando o FDP imaginava a Alemanha como uma ponte entre Leste e Oeste. No mês passado, o Partido Liberal pediu às universidades alemãs que cortem seus laços com o Instituto Confúcio, a rede acadêmica vista como um instrumento do poder brando de Pequim.

Para Scholz, o risco é que, como chanceler, ele seja reduzido ao papel de moderador, enquanto os dois políticos ativistas à sua esquerda e direita definem a agenda do país. “Os Verdes e o FDP costumam ser retratados como antagonistas, mas há muitas semelhanças”, disse ­Andreas ­Busch, professor de Ciência Política na Universidade de Göttingen. “Eles são os ‘ricos’ na política partidária alemã, partidos cujos eleitores são altamente qualificados e economicamente abastados.” Provavelmente, caberá à centro-esquerda proteger o resto do país dos efeitos indiretos da campanha de destruição criativa. “Os dias em que um chanceler alemão definia a direção da viagem e o governo o seguia se foram há algum tempo”, disse Wolfgang Merkel. “Mas isso não quer dizer que Scholz não possa copiar o truque de Angela Merkel: levar o crédito por suas melhores ideias e convertê-lo em forte apoio ao seu partido.”

Para fazer isso, Scholz terá de criar uma personalidade pública que soe diferente de sua antecessora. Isso ficou claro quando as partes apresentaram seu acordo: Lindner manifestou-se livre e longamente, enquanto Habeck cortou a colíder do SPD, Saska Esken, para dizer que ela tinha de esperar sua vez. Scholz, entretanto, leu um discurso escrito, com tom monótono, ao estilo de Angela Merkel. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1186 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: ODD ANDERSEN/AFP

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