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Gays franceses já podem casar e adotar crianças

A lei foi aprovada, mas a Igreja Católica continua a luta contra o matrimônio de homossexuais

Após o anúncio da legalização da lei, a manifestação na Praça Baudoyer, próxima da prefeitura de Paris, virou uma festa. Foto: Gianni Carta
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A cena refletiu a divisão a reinar na França. Aprovada a lei de casamento homossexual e a adoção homoparental nesta terça-feira 23, os deputados direitistas deixaram, cabisbaixos, a Assembleia Nacional (Câmara Baixa do Parlamento), enquanto os esquerdistas, a aplaudir de pé, gritavam em uníssono: “Igualdade! Igualdade! Igualdade!”

Com 331 votos a favor e 225 contra, a França tornou-se o décimo quarto país do mundo – e nono da Europa – a legalizar o casamento do mesmo sexo.

No entanto, se o Partido Socialista do presidente François Hollande saiu-se vitorioso, a divisão partidária se estende país afora.

Segundo a última enquete de opinião pública, 58% do povo apoia o matrimônio gay – mas 53% é contra a adoção homoparental.

E há, como sempre houve, grupos extremistas a protestar contra o casamento homossexual. Eles voltaram a agir na terça-feira por volta das 23h (18h em Brasília) na Esplanade des Invalides, a poucos quarteirões da Assembleia. Barrados pelas tropas de choque do Corpo Republicano de Segurança (CRS), que protegia o Parlamento, mais de uma centena de manifestantes, rostos envoltos em gorros de esqui, lenços e cachecóis, revidaram com rojões, barras de ferro, garrafas de cerveja e outros projéteis. Agrediram jornalistas, que chamaram de “colaboracionistas podres”. Por sua vez, os CRS revidaram com gás lacrimogêneo. Por volta de 1h da manhã os manifestantes se dispersaram.

Durante a terça-feira, manifestações a favor e contra o casamento gay haviam sido pacíficas. Cerca de 800 policiais do CRS observaram impassíveis os protestos em Paris. Nenhum incidente foi reportado.

Antes da aprovação da lei, diante da Assembleia Nacional, um homem exprimia seu parecer sobre o casamento gay de forma civilizada a dois jovens homossexuais.

“Veja, não tenho nada contra dois homens ou duas mulheres se amarem”, me disse, quando os dois jovens se foram, Thierry Pouchol, de 49 anos. “O Estado não tem nada a ver com o que as pessoas fazem debaixo dos lençóis, mas quando se fala em casamento entre duas pessoas do mesmo sexo entramos no campo civilizatório.”

Como assim?

“Entram em jogo a defesa da família, da religião católica, da pátria, da França”, resume Pouchol, pai de sete filhos e habitante da cidade de Le Mans. Pouchol, que integrou o movimento contra o casamento gay e a adoção homoparental liderado pela comediante Virginie Tellene, mais conhecida pelo seu nome de artista Frigide Barjot, acrescenta: “Se a legislação permite o casamento de duas pessoas do mesmo sexo, logo mais você terá o casamento de duas geladeiras, ou de três pessoas”.

Na Praça Baudoyer, situada nas cercanias da prefeitura de Paris, no centro da capital, onde a organização Inter-LGBT (Lésbicas, Gay, Bi e Trans) preparou uma manifestação para comemorar a aprovação da nova lei, Jean-Pierre Lavargne diz: “Compararam, na Assembleia, o casamento de homossexuais ao de animais, mas nada disso me espanta. Sempre houve homofobia na França, mas quando Hollande foi eleito o projeto de lei constava do programa dele e o debate veio à tona”.

Nos meses a preceder a esperada aprovação do projeto de lei, o quadro tem sido no mínimo tenso. Parlamentares receberam ameaças de morte. Na Assembleia Nacional houve, além do deputado direitista a comparar o casamento gay ao de animais, outro a argumentar que a adoção homoparental significaria o aumento do número de órfãos, e mesmo de crianças mortas.

A violência rolou solta. Neste mês de abril, o ataque realizado por uma gangue de skinheads deixou várias pessoas feridas em um bar em Lille.  Outra gangue agrediu quem marcou presença em um conhecido bar gay em Bordeaux.  No Marais, o bairro gay de Paris, são constantes as agressões contra homossexuais.

Manifestações favoráveis e contrárias ao casamento de casais do mesmo sexo têm sido pontuadas pela violência perpetrada por grupos extremistas. No domingo 21, em Paris, Barjot marchou à frente de milhares de manifestantes contra o matrimônio gay ao lado de políticos da legenda de extrema-direita, como Marine Le Pen, líder da Frente Nacional (FN), e outros da União por um Movimento Popular (UMP), o partido principal da oposição de centro-direita.

Barjot repete que não tem nada contra a união civil de pessoas do mesmo sexo, mas, sendo católica praticante, ela é contra o casamento gay.

Para mostrar que seu movimento, “manif pour tous”, não tem elos com grupos extremistas (temos de excluir, no caso, a FN), no domingo Barjot convidou oradores de extrema-esquerda e sindicalistas, além, é claro, dos costumeiros políticos direitistas.

Na “manifestação para todos” vimos, de fato, um saco de gatos a desfilar, incluindo, além do punhado de sindicalistas e extremistas, grupos como o SOS Papai, a Aliança Vida, famílias com filhos pequenos a empunhar placas nas quais se lia “Nós nascemos de um pai e de uma mãe”, ou “A família é sagrada”.

Os sinos de uma igreja badalaram quando passaram Barjot e seus aliados na luta contra o casamento gay. O padre, diante da porta principal, saudou Barjot. E, assim, mais uma vez, um clérigo abençoou a “manifestação para todos”.

Ironia das ironias: a lei inserida em 1905 na Constituição desta República que estabeleceu a separação da Igreja Católica do Estado não é respeitada, pelo menos pela direita e a vasta maioria dos católicos praticantes.

Em outra manifestação organizada por Barjot em 13 janeiro, o cardeal de Paris, André Vingt-Trois, fez suas as palavras do ex-papa, ou as de qualquer papa: “O casamento gay é um abuso da laicidade”.

A nova lei, diga-se, ainda tem de ser aprovada pelo Conselho Constitucional e publicada noDiário Oficial, mas a decisão da maioria absoluta dos parlamentares provavelmente  será acatada.

Mesmo diante da solidez da nova legislação, o movimento “Manif pour tous” já marcou uma data para o próximo protesto: 26 de maio. O objetivo é organizar um referendo sobre o casamento gay. Além disso, Barjot quer barrar outra lei de Hollande, a da Procriação Assistida por Médicos (PMA).

De qualquer forma, após o anúncio da legalização da lei, a manifestação na Praça Baudoyer, próxima da prefeitura de Paris, virou uma festa. “We are the Champions”, a canção de Freddie Mercury, emanou de potentes caixas de som. Saltaram rolhas de garrafas de champanhe.  Outros tomaram cerveja. Danças. Casais do mesmo sexo se beijaram.

A franco-norte-americana Cindy, ao lado da namorada francesa, sorri. E oferece: “Temos de celebrar, mas só vou tomar champanhe quando vir a lei no Diário Oficial”.

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