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Futuro submerso

O rompimento da barragem em Nova Kakhovka eleva a tragédia humanitária na Ucrânia a outro patamar

Até o momento, há 27 desaparecidos – Imagem: Ministério da Defesa/Ucrânia
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Após o rompimento da barragem de Nova Kakhovka, na Ucrânia, na madrugada de 6 de junho, a escala em longo prazo do desastre da inundação fica cada vez mais aparente. Na estação de Mykolaiv, a primeira cidade para o interior, a aposentada Olena Lysiuk diz que não teve escolha a não ser deixar seu apartamento em Kherson, embora fosse muito alto para ser inundado. “Não é só que não temos água, gás ou eletricidade. Também nos acostumamos a não tê-los durante a ocupação russa. Mas agora o esgoto não funciona. Esse é o novo problema”, diz Lysiuk. Agora ela planeja ficar em Mykolaiv com parentes, enquanto recebe do Estado uma ajuda financeira de 10 mil hryvnia (1,3 mil reais).

Vasyl Chornyi desce de um vagão de evacuação de Kherson e acende um cigarro enquanto o trem se junta a outro. O Rio Inhulets inundou parte de sua aldeia, Fedorivka, 29 quilômetros a nordeste, e embora sua casa não tenha sido diretamente afetada ele decidiu sair por temer uma pandemia. “O cemitério está inundado, os esgotos estão inundados”, diz Chornyi, que afirma ter visto caixões a flutuar na correnteza. “Quando as águas baixarem, vai ter muitos peixes mortos, outros apodrecendo. Em Kherson, os poços estão arruinados. Os banheiros fora das casas estão inundados”.

Casas inteiras têm sido arrastadas para o Mar Negro. Na sexta-feira 9, um telhado intacto foi parar numa praia em Odessa, a 210 quilômetros de distância. Moradores da cidade foram instruídos a não tentar remover o lixo, juncos e outros detritos transportados pela água, por causa do temor de que minas terrestres, algumas feitas de plástico leve, possam flutuar perigosamente entre eles. Mas isso deixa a limpeza para os sobrecarregados serviços de emergência do Estado.

Fonte: Institute for The Study of War com AIE´s Critical Threats Project

O Ministério do Interior de Kiev contabiliza 27 desaparecidos até agora, embora o número real provavelmente seja muito maior, após o desastre ocorrido no ponto mais crítico da guerra desde que as tropas russas foram repelidas de Kiev. Um dia antes, a Ucrânia iniciou, embora sem alarde, a esperada contraofensiva, da qual depende o futuro da guerra, da Ucrânia e talvez até da Rússia.

Então, às 2h50 da terça-feira 6, um cataclismo atingiu a barragem de Nova Kakhovka. Os moradores relataram ter ouvido uma explosão ensurdecedora e que “o céu ficou branco” na madrugada. A análise sísmica subsequente do Norsar­ da Noruega confirmou até agora, enquanto a mídia dos Estados Unidos relata que satélites espiões também detectaram uma explosão nessa hora. Especialistas acrescentam que teria sido muito mais difícil destruir a barragem por fora do que explodi-la por dentro. Se foi a Rússia, o que parece mais provável, que motivo poderiam ter suas forças? Uma explicação: teria sido uma resposta defensiva instintiva à ameaça de um ataque anfíbio na região de Kherson através do Dnipro, uma reação de medo à possibilidade de um ataque surpresa de Kiev, do outro lado do principal rio do país.

Certamente, um ataque naval agora é mais difícil para a Ucrânia, e a construção de uma ponte flutuante sobre o Dnipro alargado é praticamente impossível. Mas se houvesse uma tentativa de imitar a destruição de Stalin da ainda maior barragem de Zaporizhzhia, diante do avanço do exército alemão em 1941, as consequências dos acontecimentos seriam suportadas em grande parte por civis e, paradoxalmente, soldados russos, na margem esquerda do Dnipro, ao sul, o lado dominado pelos invasores.

A inundação coloca em risco a segurança da usina nuclear de Zaporizhzhia

Um grupo de ativistas russos contra a guerra relatou que 1.842 moradores dentro e ao redor da cidade inundada de Oleshky, no outro lado do Rio Dnipro, diante de Kherson, “atualmente não são autorizados a sair pelos militares russos”, e que 338 deles precisam de assistência urgente, pois os suprimentos de água e comida ficaram perigosamente curtos.

Eram, porém, os russos os controladores da central hidrelétrica na barragem. Sob a ocupação, Nova Kakhovka há muito havia parado de gerar energia e foi transformada em uma guarnição, de onde os russos poderiam se defender de qualquer tentativa das forças ucranianas de se aproximar da barragem pela margem direita. Há outros indícios de que a Rússia via a barragem como uma ficha num jogo militar, sem levar em conta as consequências. Os ocupantes permitiram que os níveis de água no reservatório de Kakhovka, atrás da barragem, subissem ao máximo em 30 anos, enchendo a represa com mais de 18 milhões de metros cúbicos de água, o tamanho do Grande Lago Salgado de Utah, nos EUA.

A empresa de energia ucraniana que administrava a usina hidrelétrica antes de ela ser invadida também estava preocupada. “No fim de setembro, início de outubro, os trabalhadores ucranianos da estação perceberam que os russos levavam muito material explosivo”, disse Ihor Syrota, chefe da Ukrhydroenergo. “Mas no fim de outubro os trabalhadores ucranianos foram mandados embora e se tornou um quartel-general militar para os russos.” O presidente Volodimir Zelensky disse em uma reunião online com ativistas ambientais: “Alertamos o mundo sobre os explosivos na barragem e outras instalações. Era evidente que a Rússia tinha a intenção de causar um desastre”.

As tropas ucranianas encontram dificuldades para avançar – Imagem: Presidência da Ucrânia

Sejam quais forem os motivos, não há dúvida sobre as consequências. Embora a atenção imediata tenha sido para a tragédia humana e ambiental rio abaixo, uma catástrofe ainda maior poderá surgir rio acima nos próximos meses e anos. O nível da água no reservatório de Kakhovka caiu para menos de 12 metros, entrando no que as autoridades ucranianas chamam de “zona morta”. Isso significa que é muito baixa para alimentar os quatro sistemas de canais da era soviética que abastecem toda a região, particularmente os distritos de Kherson e Zaporizhzhia e a Crimeia. Juntas, essas regiões representam um dos celeiros do mundo, e o Ministério da Agricultura ucraniano alertou que, sem esses canais vitais, elas poderão se tornar “desertos” no próximo ano.

A queda dos níveis de água no reservatório também ameaça o abastecimento de água potável para cidades e aldeias ao longo do curso do baixo Dnipro. E há outra ameaça, menos certa, mas potencialmente ainda mais catastrófica. O nível do reservatório de Kakhovka está agora bem abaixo dos 13,3 metros necessários para atingir o canal de captação da usina nuclear de Zaporizhzhia, cerca de 200 quilômetros a montante da barragem. Normalmente, a água seria sugada do reservatório para tanques de pulverização usados para resfriar os seis núcleos do reator e o combustível irradiado armazenado na usina. A drenagem do reservatório não é ameaça imediata, pois os seis reatores de Zaporizhzhia foram fechados após a ocupação da usina pelas forças russas e sua transformação em guarnição e depósito militar. Um dos reatores foi mantido em “desligamento quente”, com temperatura mais alta para ajudar no aquecimento da cidade vizinha de Enerhodar. Este foi colocado agora em desligamento a frio. As necessidades de água da planta são muito menores do que quando ela funcionava.

A contraofensiva ucraniana tem sido malsucedida até o momento

Além disso, há uma lagoa de resfriamento considerável para emergências. A Agência Internacional de Energia Atômica estima que contém água suficiente para manter as operações de resfriamento por vários meses. Autoridades ucranianas da corporação ucraniana de energia nuclear, Energoatom, acreditam que é suficiente para vários anos. Estudos encomendados pela Energoatom após o desastre da usina nuclear de Fukushima em 2011 descobriram, no entanto, que, sem a força contrária das águas do reservatório de Kakhovka, do outro lado, o dique ao redor da lagoa de resfriamento poderá estourar com a pressão da água interna. O presidente da empresa, Petro Kotin, minimizou esse cenário e garantiu aos ucranianos a existência de outras fontes de água em caso de emergência para evitar o derretimento do combustível radioativo na usina. “São unidades móveis de bombeamento que podem ser implantadas se necessário, e a última fronteira é o uso de poços subterrâneos de água potável”.

A ameaça real, segundo ele, é a sabotagem deliberada da usina pelos russos. Se eles realmente explodiram a barragem de Kakhovka, isso aumenta o medo de que também possam explodir a usina de Zaporizhzhia, apesar das consequên­cias que quase certamente se espalhariam para o território russo. No momento, as águas mal baixaram de seu pico – e a situação é complicada pelo fato de que, após uma pausa de um dia, o bombardeio russo e a retaliação ucraniana recomeçaram. Dois socorristas ficaram feridos na cidade controlada pela Ucrânia no sábado 10, enfatizando os perigos, enquanto a situação de segurança era tão séria que outro grupo informou a The Observer sobre seus últimos esforços de emergência.

Zelensky diz ter alertado o Ocidente das intenções russas de explodir a barragem – Imagem: Presidência da Ucrânia

As ilhas no delta do Dnipro, antes ocupadas pelos russos, foram submersas, e imagens de drones mostram antigos assentamentos costeiros, como Hola­ ­Prystan, também inundados. Um desastre humanitário na margem esquerda controlada pela Rússia “indubitavelmente aumentaria o risco” de um surto de cólera ou outras infecções intestinais, diz o professor Paul Hunter, professor de medicina na Universidade de East Anglia e consultor da Organização Mundial da Saúde. “As inundações podem levar o esgoto à água extraída para beber. Se não for tratada adequadamente, pode causar uma série de problemas, dos quais o mais assustador é a cólera”. A doença não apareceu na Ucrânia até agora, acrescenta, mas tem histórico de surgir durante e em torno de guerras, mais recentemente na Síria. Para evitar problemas, a Ucrânia ajudará com vigilância médica e vacinação e garantirá que, quando os civis ficarem doentes, possam obter bons cuidados de saúde, acrescenta Hunter.

Enquanto isso, com um efeito terrível, a destruição da barragem de Kakhovka aumenta as enormes apostas na contraofensiva ucraniana. Era assustador o desafio enfrentado pelas tropas enquanto tentavam atacar as linhas de defesa russas bem preparadas, e começaram a circular fotos nas redes sociais das primeiras perdas de blindados ocidentais, tanques Leopard alemães e veículos de combate Bradley fabricados nos EUA. “Com exceção dos Estados Unidos, nenhuma outra força militar de estilo ocidental pode conduzir operações sustentadas de armas combinadas em escala. Portanto, as forças ucranianas tentam fazer no nível tático o que nenhum outro integrante europeu da Otan é capaz atualmente”, escreveu Franz-Stefan Gady, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.

A inundação aprofundou a crise na Ucrânia. Os momentos dramáticos nas primeiras horas da manhã da terça-feira 7 significavam que o país não apenas travava uma guerra, mas lutava contra o que é quase com certeza uma catástrofe ambiental e humanitária totalmente desnecessária, causada pelo homem. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Futuro submerso’

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