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Furando o cerco
As forças ucranianas conseguem afastar a esquadra russa e manter o comércio nos portos ativo


O que antes era o Hotel Odessa virou ruína. O edifício de 19 andares no Boulevard Primorskyi foi transformado numa concha enegrecida. Os russos o atingiram em setembro com um míssil antinavio Oniks. O movimentado terminal de passageiros também foi danificado, assim como silos de grãos, armazéns e uma igreja ortodoxa.
Neste verão, a Rússia retirou-se de um acordo que permitia a Kiev enviar cereais para o mundo todo. Desde então, pulverizou os portos da Ucrânia ao longo da costa do Mar Negro. Foram 13 ataques massivos, geralmente à noite. O som das sirenes pode ser ouvido por toda Odessa. Depois vêm as explosões, que se espalham pela cidade.
Dezenove meses após a invasão, a estratégia de guerra de Vladimir Putin é evidente: bombardear a Ucrânia até a submissão. Na semana passada, tropas russas lançaram dois mísseis Iskander. Eles caíram num café na aldeia de Hroza, na província de Kharkiv, onde familiares e amigos estavam reunidos para se despedir de um soldado morto em batalha.
Os enlutados tornaram-se as mais recentes vítimas da guerra: 52 pessoas foram mortas. Foi o ataque mais mortífero numa região que tem sido alvo de bombardeios russos implacáveis. No dia seguinte, cedo, Moscou atacou o centro de Kharkiv. As equipes de resgate retiraram o corpo de um menino de 10 anos dos escombros. Ele estava dormindo. Também foi morta sua avó. Seu irmão de 11 meses ficou ferido.
O cálculo cínico de Putin é de que o Ocidente acabará por se cansar de uma guerra sem final à vista. Ele aguarda janeiro de 2025 e o retorno de Donald Trump como presidente dos EUA. Isso, pensa Moscou, significaria um fim rápido da ajuda militar da Casa Branca a Kiev.
A contraofensiva da Ucrânia em terra – concebida para libertar o sul do país e dividir ao meio as forças de ocupação russas – tem progredido lentamente. Revelou-se difícil e dispendiosa. As brigadas ucranianas equipadas com tanques de batalha ocidentais têm dificuldade para avançar pelos campos minados e as posições russas entrincheiradas. No Mar Negro, contudo, Kiev fez progressos notáveis. Drones e mísseis Storm Shadow fornecidos pelo Reino Unido destruíram alvos na Crimeia, incluindo baterias de defesa antiaérea, um estaleiro e o quartel-general da frota russa. Na semana passada, imagens de satélite revelaram que a poderosa marinha de Moscou deixou o porto de águas profundas de Sebastopol.
Enquanto isso, os navios mercantes voltaram a navegar. De acordo com Yurii Vaskov, vice-ministro da Ucrânia responsável pelos portos marítimos, mais de 30 navios chegaram ou partiram de Odessa e dos portos vizinhos de Chornomorsk e Pivdennyi. Eles transportavam cargas de grãos, óleo de girassol e metais, incluindo uma remessa de minério de ferro.
Até agora, o corredor de cereais da Ucrânia parece funcionar. Abrigada pelo antigo acordo mediado pela ONU e pela Turquia, a Rússia conseguiu “inspecionar” contêineres à medida que atravessavam o Mar Negro, causando atrasos. Agora, os navios podem deslocar-se sem impedimentos. Sua rota atravessa as águas territoriais ucranianas antes de passar pela Romênia e a Bulgária, ambas integrantes da Otan.
Ao Observer, Vaskov disse que a Ucrânia tem direito de exportar cereais para países da África e do Oriente Médio. Segundo ele, a Rússia exporta de 13 milhões a 14 milhões de toneladas por mês através do Mar Negro. “Por que deveria parar?”, indagou. O governo do presidente Volodymyr Zelensky garantiu compensar os proprietários se algum navio for afundado.
Na semana passada, o Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido disse que Moscou realmente estava conspirando para explodir navios civis. Um plano “pernicioso” faria seus submarinos liberarem minas no meio da rota marítima. “É quase certo que a Rússia quer evitar afundar abertamente navios civis, atribuindo, em vez disso, falsamente a culpa à Ucrânia por qualquer ataque a navios civis no Mar Negro”, afirmou o ministério.
Vaskov disse que os membros da tripulação que usavam a rota não ficaram assustados. “Eles já estiveram em outros lugares do mundo em guerra. Seus barcos não são alvos militares.” Se a Rússia tentasse atacar o transporte marítimo civil, isso aumentaria os custos de seguro para seus próprios navios, ressaltou. A Ucrânia também enviava cereais através dos portos do Danúbio – que a Rússia bombardeou – e por estrada, acrescentou.
Por enquanto, o número de navios de carga que fazem essa arriscada viagem é pequeno. Alguns acreditam que, com a marinha russa no Mar Negro quase confinada no porto, o novo corredor será tão movimentado quanto o antigo. Outros estão céticos. “Estávamos acostumados com a Baía de Odessa cheia de barcos e rebocadores. Isso parou”, lamenta Oleg Kostyuk, CEO da Global Transport Investments, uma empresa de logística.
Kostyuk comparou a situação dinâmica no Mar Negro à “teoria dos jogos”. A Rússia é capaz de afundar navios com destino à Ucrânia, mas Kiev poderia furar os navios russos, observa. O Mar Negro foi fundamental para a sobrevivência econômica da Ucrânia. A colheita de cereais diminuiu de 100 milhões de toneladas antes da invasão para 77 milhões no ano passado, e são esperadas 50 milhões de toneladas nesta temporada. “Ninguém inventou uma forma mais barata de transportar grãos do que o transporte marítimo. Você pode colocar 60 mil toneladas num navio.”
O novo secretário da Defesa britânico, Grant Shapps, lançou no último fim de semana a ideia de que a marinha britânica poderia escoltar navios no Mar Negro, mas Londres logo descartou a possibilidade. Nos bastidores, os aliados da Ucrânia têm ajudado de outras formas. Alina Frolova, ex-vice-ministra da Defesa ucraniana, disse que os EUA fornecem discretamente a Kiev dados de satélite.
Apesar dos recentes reveses, a Rússia tem muitos “recursos”, dizem especialistas. Eles incluem drones camicases, mísseis de cruzeiro Kalibr e aviação. Andrii Klymenko, chefe do grupo de monitoramento do Instituto de Estudos Estratégicos do Mar Negro, avalia que Moscou pode causar mais danos: “O agrupamento militar na Crimeia ainda é muito poderoso”.
A visão do Porto de Odessa na semana passada era enganosamente calma. Dois navios, o Equator e o Maranta, atravessaram a baía. “Costumávamos receber 2,5 mil remessas todos os anos”, refletiu Kostyuk, o diretor de logística. “Agora está tranquilo demais.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Furando o cerco’
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