Mundo
Fumaça bilionária
A prefeitura de Nova York fecha o cerco contra os revendedores não autorizados de cannabis na cidade


Sejamos claros: “Não fume nas praças” é a mensagem que foi colocada em torno da Times Square após a recente legalização da cannabis que, segundo alguns, transformou Nova York em um lugar onde fumar maconha está liberado para todos. A legislação também desencadeou um boom de cultivo no interior do estado, que produziu 135 toneladas de maconha, avaliadas em 750 milhões de dólares, logo na primeira colheita. Até agora, apenas um punhado de dispensários licenciados pelo estado foi aberto, um complemento para centenas de lojas de vaporizadores que também vendem a erva, serviços de entrega em domicílio mais tradicionais e aqueles que apregoam seus produtos em parques e esquinas.
Com o odor de cannabis por toda Nova York, o prefeito Eric Adams está empenhado em redobrar os esforços para reprimir os distribuidores não licenciados, invadindo dezenas de lojas, confiscando produtos e aplicando multas. Em um caso, um ônibus escolar reformado que vendia maconha perto da balsa de Rockaway Beach chegou a ser apreendido.
Há muito dinheiro em jogo. Em março de 2022, os estados que legalizaram a maconha somaram um total de 11,2 bilhões de dólares em receita tributária de vendas legais do produto para uso adulto. Nacionalmente, o mercado legal de cannabis pode chegar a US$ 66 bilhões até 2025. “Temos que nos concentrar nesse negócio”, afirma Adams, preocupado com a expansão de lojas ilegais, que oferecem produtos de cannabis não regulamentados e não testados e têm atraído menores de idade. “Não podemos permitir que as pessoas zombem do nosso sistema.”
Em 2022, os estados que legalizaram a maconha relataram uma arrecadação tributária superior a 11 bilhões de dólares
Esse “sistema” é projetado para promover a justiça social, mas os críticos dizem que o mercado legal está sobrecarregado com uma burocracia de autorizações, licenças, impostos e regulamentos que, apesar da possibilidade de prisão e apreensão, dificilmente perturba o antigo comércio ilegal. Segundo as regras elaboradas pelo antecessor de Adams, Bill de Blasio, o Escritório de Gestão da Cannabis de Nova York favorece produtores e dispensários administrados por membros de comunidades afetadas por décadas de proibição, um período de um século que a União Americana de Liberdades Civis descreve como uma “guerra racista”.
“Nos últimos 30 anos, os nova-iorquinos negros tiveram 15 vezes maior probabilidade de ser presos por maconha do que os brancos”, diz o conselho de gestão. “Para os latinos, era oito vezes mais provável.” Assim, diz o órgão, a maioria das licenças anunciadas até o momento foi concedida a empresários negros. Nova York licenciou, porém, muito mais fazendas do que dispensários, criando um estoque de produto não vendido.
Na Hudson Cannabis, Melany Dobson tem 1.215 quilos de brotos colhidos e empilhados sobre o telhado em recipientes aguardando a certificação de um dos cinco laboratórios de teste estaduais. Com o valor de mercado de 670 dólares o quilo no atacado, seu estoque vale 800 mil. Mas os preços no atacado em Nova York estão caindo, assim como em outros estados, onde muitos produtores fecharam as portas, e o governo federal está paralisado por divergências políticas sobre a legalização total.
Burocracia. A regulação do cultivo de maconha é bem mais simples que a imposta aos locais de venda da erva – Imagem: iStockphoto
Dobson, de 30 anos, é funcionária de Abby Rockefeller, que também administra a leiteria de Churchtown, cujas vacas têm estábulos com seus nomes. Rockefeller, descendente do barão do petróleo John D., disse que seu principal interesse é a regeneração natural do solo – e descobriu-se que o cânhamo e a cannabis são eficazes nesse esforço. A Hudson Cannabis está licenciada para produzir 4 mil metros quadrados de flor de cannabis, dos quais 2.668 são cultivados ao ar livre. Mas a indústria é nova em Nova York, e a semente de cannabis ainda não está otimizada para o clima do Vale do Hudson.
“Não faz sentido alguém reivindicar a melhor cannabis agora, porque muitos bancos de sementes foram eliminados durante a proibição”, diz Dobson. Segundo ela, os produtores ilegais de Nova York ignoraram características agronômicas porque os negócios de drogas eram frequentemente feitos às pressas. “Temos um longo caminho a percorrer para produzir sementes que reflitam as condições”, acrescenta.
Além disso, sob a legalização estado a estado, transportar maconha de um para outro é ilegal. “Os regulamentos são confusos”, observa Scott Solomon, da OSS, empresa de gerenciamento de riscos envolvida no fornecimento de transporte seguro. “Em Nova York, as empresas não têm os recursos dos grandes players de cannabis.” O pântano de regulamentações dá ao mercado ilegal uma vantagem competitiva. “Há muita frustração”, diz Solomon. “É um mercado cinzento, onde a cannabis não é necessariamente legal, mas é descriminalizada.”
Com gargalos de certificação e distribuição, e nenhuma expectativa de que Nova York permita uma colheita própria ou vendas à beira da estrada, comuns em vinhedos ou fazendas de frutas, a montanha de erva de Old Mud Creek provavelmente será processada para extrair seu ingrediente ativo ou vendida a produtores de alimentos.
Nova York licenciou mais fazendas do que lojas, criando grande estoque não vendido
Dobson, que cresceu numa fazenda microverde no Maine e planejava estudar Direito antes de ingressar numa operação de maconha com cinco estufas em Humboldt, diz que o negócio se encaixa naturalmente no movimento da fazenda à mesa. “Eu compararia isso com vinho e café. A única maneira de atender às necessidades dos agricultores é valorizar a origem da cannabis e seus atributos”, diz. “Até agora, a menos que você fosse para a Jamaica ou o México, não tínhamos ideia de onde vinha.”
Isso é algo que os vendedores ilegais contestariam. Afinal, o branding é a chave para vendas e preços, e eles argumentam que a erva nativa de Nova York não é páreo para seu produto. Mas o movimento que favorece compras locais traz vantagens de marketing. Dobson argumenta que a indústria de cultivo interno estigmatizou a si mesma por apenas imitar o ambiente natural. “Estamos em colaboração com a planta e em colaboração com a natureza”, diz ela. “Fazer parte do movimento farm-to-table é importante para nós, por isso estamos nos concentrando em flores premium cultivadas de forma regenerativa.”
O experimento de Nova York com a legalização da cannabis ocorre em meio à crescente preocupação com as consequências para a saúde mental. Dois anos atrás, o Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA alertou que fumar maconha de alta potência todos os dias poderia aumentar quase cinco vezes as chances de desenvolver psicose.
É improvável que o esforço para provocar o mercado a aceitar o controle regulatório sob o pretexto da legalização seja totalmente tranquilo, mas está longe da era da criminalização e do encarceramento. Agora a droga é legal, mas fumar em espaços públicos, incluindo parques e praias, não é. A loja Smacked! (Bateu!) em Greenwich Village, uma das duas novas lojas legais da cidade e a única licenciada para “indivíduos envolvidos com a justiça”, ou pessoas com delitos anteriores relacionados à maconha, ficou fechada durante dois dias na última semana. Os compradores, presumivelmente, seguiram um quarteirão ao norte até o Washington Square Park, onde, como fazem há décadas, os revendedores atuavam ao ar livre. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
LEGALIZAÇÃO A CONTA-GOTAS
Como funciona o mercado de cannabis nos estados norte-americanos
Baseado. É arriscado cruzar as fronteiras estaduais com ele – Imagem: iStockphoto
Califórnia
É o terceiro maior produtor, com 577 toneladas. As autoridades fiscais estaduais dizem que os clientes compraram 5,3 bilhões de dólares em produtos legais de maconha em 2022, uma queda de 8% em relação ao ano anterior e o primeiro declínio desde que a venda foi legalizada em 2018. A indústria enfrenta ventos contrários, incluindo a concorrência do mercado ilegal em expansão, atrasos nas licenças e colapso dos preços no atacado. Hirsh Jain, vice-presidente da Câmara de Comércio de Cannabis da Califórnia, disse ao San Francisco Chronicle que a queda nas vendas é “um sinal de alerta” de que “o mercado legal do estado está à beira do colapso”.
Kansas
O Estado das Planícies se opõe à legalização e mantém as penalidades por posse e tráfico. Em 2015, dez delegados do Kansas processaram o vizinho Colorado, alegando que a legalização da maconha no estado estava colocando um fardo indevido em sua atuação legal. A Suprema Corte dos EUA se recusou a julgar o caso. Em dezembro, o Kansas esteve novamente no centro das atenções depois que a polícia multou um paciente de câncer por usar maconha para aliviar seus sintomas.
Colorado
Possui uma produção monstruosa, de 623 toneladas. Na semana passada, Denver licenciou seu primeiro ônibus com consumo liberado de maconha para transferências ao aeroporto. As vendas caíram 20% no ano passado, para 1,8 bilhão de dólares, e a indústria está na mira do debate sobre a posse de armas. Pacientes com maconha medicinal licenciada não têm permissão para portar armas de fogo, conforme a lei federal. Mas um juiz federal de Oklahoma decidiu que a proibição é inconstitucional.
Oregon
Outro gigante, com 614 toneladas, mas na semana passada a Comissão de Bebidas Alcoólicas e Cannabis do estado disse que a indústria de maconha recreativa estava em sua posição econômica “mais fraca” desde 2016. Demanda enfraquecida e uma colheita recorde ao ar livre em outubro de 2021 (o custo médio da produção de flores de cannabis secas cultivadas em ambiente fechado foi de 1.048 dólares o quilo em 2020, em comparação com 475 dólares por quilo ao ar livre) “desencadeou uma queda nos preços que colocou toda a cadeia de suprimentos sob pressão”, afirmou o órgão.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Fumaça bilionária “
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