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França terá uma reprise do duelo entre Macron e Marine Le Pen
Pela terceira vez, a esquerda está fora do segundo turno


Os franceses terão uma reprise do segundo turno de 2017. Com progressão de alguns pontos para ambos, Emmanuel Macron teve 27,8% dos votos válidos na primeira etapa das eleições presidenciais e Marine Le Pen, 23,1%. No dia seguinte, os dois candidatos retomaram a campanha, indo ao encontro dos eleitores em pequenas cidades e dialogando com cidadãos que cobravam deles uma melhora no poder aquisitivo, minado pela inflação causada pela guerra. O presidente declarou-se candidato às vésperas do limite legal, em março, e quase não fez campanha. Em sua terceira eleição, a rival da extrema-direita percorreu o país de norte a sul.
O resultado do primeiro turno mostra que pouco mais de 70% dos eleitores não votaram em Macron. Ele evitou debater com os outros candidatos, sob pretexto de estar envolvido na batalha diplomática por um acordo de paz entre a Ucrânia e a Rússia. Por acumular a função de presidente da França com a chefia do Conselho da União Europeia, Macron tem mantido diálogos frequentes com Putin desde o início da invasão russa.
Le Pen ainda suscita forte rejeição, apesar do longo trabalho de normalização da imagem de seu partido, Rassemblement National. Quanto a Macron – de centro-direita para alguns e de direita para outros – ele é detestado pelo eleitorado de extrema-direita, mas também pela esquerda. A maioria dos franceses o vê como o “presidente dos ricos”, devido a medidas como a supressão do imposto sobre fortunas logo no início de seu mandato.
Por pouco mais de 1 ponto porcentual, o candidato da França Insubmissa (La France Insoumise), Jean-Luc Mélenchon, perdeu a vaga no segundo turno. Pela terceira vez na história da Quinta República, a esquerda não passou da primeira etapa, a exemplo do ocorrido em 2002 e 2017. Mélenchon conquistou 21,9% dos votos. Macron depende, sobretudo, desse eleitorado para continuar no poder.
Dias antes do primeiro turno, o jornal Libération noticiou o apoio do ex-presidente Lula a Mélenchon. O líder da esquerda francesa visitara Lula na prisão em Curitiba em solidariedade ao ex-presidente. No discurso a seus eleitores, Mélenchon repetiu três vezes: “Nenhum voto para Marine Le Pen”. O apoio formal a Macron ficou subordinado a uma consulta aos eleitores da França Insubmissa. Outros três candidatos de esquerda, com porcentuais abaixo de 5%, Yannick Jadot (Ecologistas), Anne Hidalgo (PS) e Fabien Roussel (PC) recomendaram a seus eleitores o voto no atual presidente. Representantes da extrema-esquerda, como Nathalie Arthaud e Philippe Poutou, não recomendaram voto, pois combatem tanto Le Pen quanto Macron. Já Éric Zemmour e Nicolas Dupont-Aignan, de extrema-direita, declararam imediatamente apoio a Le Pen.
Pela terceira vez, a esquerda está fora do segundo turno
“A extrema-direita cresceu e foi banalizada pela presidência de Emanuel Macron, eleito com a promessa de deter o seu avanço. Dando as costas para o mandato que lhe foi confiado em 7 de maio de 2017, quando no primeiro turno havia obtido apenas 18% dos votos, Macron portou-se como um bombeiro incendiário, reforçando a agenda identitária e autoritária contra a qual ele foi eleito”, escreveu, na véspera do primeiro turno, o jornalista Edwy Plenel, fundador e diretor de redação do site Mediapart, o mais lido e respeitado jornal online da França.
A atomização das esquerdas era evidente nas seis candidaturas de esquerda e extrema-esquerda e na impossibilidade de formar uma união das forças progressistas para enfrentar Macron e a extrema-direita, que tinha três candidatos: Le Pen, Dupont-Aignan e o islamofóbico Zemmour, que ousou reescrever momentos importantes da história francesa com uma leitura neofascista. Plenel observou ainda que, durante a sua presidência, “Macron não parou de soprar nas brasas que ele agora convoca os eleitores a apagar”. Como outros analistas políticos, ele pensa que Le Pen era a concorrente dos sonhos de Macron, pois o “neofascismo francês” é rejeitado pela maioria. Apesar de muitos eleitores preferirem não votar no segundo turno por aversão aos finalistas, há a possibilidade de reedição da frente republicana contra a extrema-direita, que garantiu a eleição de Macron.
Uma das revelações do primeiro turno é a indigência do Partido Socialista, cuja candidata Anne Hidalgo teve o score miserável de 1,7%, digno dos partidos nanicos. Como para o PS, este foi o pior resultado da história de seu partido. Já a candidata do partido da direita gaullista, Les Républicains, Valérie Pécresse, teve 4,7%. Derrota trágica para as duas legendas que se revezavam no poder até 2017.
Em artigo publicado no Le Monde, o economista Thomas Piketty acusava o partido de Macron de empurrar o país para a direita, ao forçar uma disputa com a extrema-direita nas questões identitárias e de imigração. “O mais perigoso é a arrogância do presidente-candidato que pretende ser reeleito sem debate nem programa, ou então com medidas improvisadas, traindo seu tropismo fundamental: governou primeiro e sempre para os mais ricos, focando nas divisões de seus adversários”, escreveu Piketty.
Num clima de condenação generalizada da invasão da Ucrânia pela Rússia, a proximidade ou simpatia pelo presidente russo foi uma das acusações mais usadas pelos adversários de Le Pen. Ela visitara Putin antes das eleições de 2017 e seu partido buscou um empréstimo em um banco russo, quando bancos franceses se recusaram a solucionar o problema de caixa do Rassemblement National. Ademais, ela deu algumas entrevistas defendendo a anexação da Crimeia e da região de Donbass pela Rússia.
Mélenchon sempre defendeu a neutralidade da França no conflito, mas condenou enfaticamente a invasão russa. Mesmo assim, a direita e parte da esquerda tentaram acusá-lo de condescendência em relação a Putin por suas conhecidas críticas a Washington.
Entre os 48,7 milhões de eleitores franceses inscritos nas listas eleitorais, 27% não compareceram às urnas. A apatia é explicada, em parte, pela crise da Covid-19, que dominou a pauta por dois anos. Da mesma forma, a invasão da Ucrânia parasitou o debate político interno, só retomado, com certo entusiasmo, após a subsequente crise da energia com reflexos sobre a inflação, sentida imediatamente pela população.
Le Pen captou a principal preocupação dos franceses e se apresenta como “a candidata da recuperação do poder aquisitivo”. Macron, por sua vez, esquiva-se dos debates e entrevistas usando a guerra na Ucrânia como escudo para aparecer como o líder que atualmente dirige os rumos da União Europeia. Terá de superar a imagem arrogante que deixa transparecer para evitar uma desagradável surpresa no segundo turno. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1204 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Duelo reprisado”
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