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Foi bonita a festa, pá

Faz quarenta anos, os militares portugueses saíram às ruas e puseram fim a 48 anos de salazarismo, o fascismo à portuguesa

Portugal||
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Faz quarenta anos, os militares portugueses fartos da guerra colonial saíram às ruas e puseram fim a 48 anos de salazarismo, o fascismo à portuguesa. Na minha família de imigrantes portugueses, o impacto foi espetacular. Apesar da recente substituição do general de turno, a ditadura brasileira ainda não dava sinais de abrandar e foi a primeira oportunidade, em minha vida de adolescente, de ouvir e participar de discussões políticas a sério.

Meu pai tinha perfil mais conservador do que gostava de admitir, mas era antissalazarista e se entusiasmara com a publicação, dois meses antes, do livro Portugal e o Futuro. Com prefácio de Carlos Lacerda, o general António de Spínola, vice-chefe do Estado-Maior português e ex-governador militar da Guiné Portuguesa (atual Guiné-Bissau), admitia ser impossível vencer a guerra colonial e propunha transformar o império colonial em uma federação na qual Portugal seria um dos estados e a capital seria no interior de Angola.

A proposta soava então tão bizarra quanto hoje, mas era um salto inesperado em relação ao discurso oficial de dois anos antes, quando o ditador Emílio Garrastazu Médici foi a Portugal buscar os ossos de dom Pedro I em Portugal e do ano anterior, quando voltou para visitar o colega português Marcello Caetano. Lisboa propunha um “Mercado Comum Luso-Brasileiro” e garantia que os rebeldes estavam sendo derrotados e as colônias portuguesas seriam “províncias ultramarinas” para sempre. Uns contraparentes de Angola haviam nos visitado nessa época (acharam São Paulo muito parecida com Johanesburgo) e se queixaram da ignorância dos “gentios” e dos “bandidos” que não os deixavam explorar a colônia em paz.

Como mais tarde o acompanhamento da política e da história me ensinou, sempre que alguém que participa do poder propõe uma concessão tão súbita e drástica é certo que ela tarda demais, mesmo que seus parceiros não compreendam. Caetano recusou a proposta de “autonomia desagregadora” para as colônias e Spínola e seu chefe foram demitidos. Semanas depois, na madrugada de 25 de abril, uma rádio de Lisboa transmitiu a senha do levante, a (então proibida) canção “Grândola, Vila Morena”. Às oito da manhã, a praça central de Lisboa estava tomada por tanques e à tarde o general Spínola, de monóculo e capa bordada, recebia a rendição de Marcello Caetano, despachado para o exílio na ilha da Madeira e depois no Brasil junto a grande parte da elite salazarista. No dia seguinte, o editorial desesperado de um jornal salazarista apelava aos rebeldes para se renderem e dissolverem seu governo “ilegal”.

O anacrônico general, que estivera no cerco de Leningrado ao lado dos voluntários portugueses por Hitler, iniciara um processo que não podia controlar. Pensava ser o arauto do futuro quando era apenas a última voz do passado. Os jovens oficiais, os sindicatos livres, os partidos de esquerda que retornaram ou surgiram com o colapso do salazarismo não estavam dispostos a dançar a sua música. Muito menos os “bandidos” africanos e timorenses, que a essa altura controlavam a maior parte dos territórios que Spínola sonhava manter unidos a Portugal e não tinham nenhuma intenção de aceitar menos que a independência total.

Vendo o poder escapar das mãos, Spínola tentou um golpe. Convocou para 28 de setembro uma manifestação da “maioria silenciosa” em nome da qual pretendia afastar as esquerdas do governo e pôr os comunistas novamente fora da lei. Na véspera, com apoio da polícia militar, fez prender os líderes da esquerda militar, Vasco Gonçalves (primeiro-ministro), Otelo Saraiva de Carvalho e Francisco da Costa Gomes, mas os fuzileiros navais e paraquedistas rejeitaram suas ordens, bloquearam sua manifestação e o obrigaram a libertar os generais presos. Renunciou, mas em 11 de março de 1975 tentou um golpe de Estado. Fracassou em três horas e fugiu de helicóptero para a Espanha e sob a proteção da agonizante ditadura franquista, organizou uma rede terrorista que por anos executou atentados contra partidos de esquerda.

Foi nessa primavera, quando os militares de esquerda ditavam as cartas em Portugal e o fervor revolucionário da Revolução dos Cravos estava no auge, que minha família voltou a visitar o país. Manifestações tomavam as ruas praticamente todos os dias. Nossos parentes em Portugal, como todo o país, estavam divididos. Um tio de segundo grau, pequeno empresário em Amarante, era o mais apavorado, certo de que o comunismo estava para ser implantado. Queixava-se de que a nova geração os queriam todos mortos e fantasiava uma invasão espanhola para pôr ordem na bagunça, mesmo que fosse para anexar Portugal. Já os jovens minimizavam suas aflições e viam o movimento com simpatia e o futuro com otimismo.

Fábricas e latifúndios eram ocupados e “universidades proletárias” criadas. As colônias, uma a uma, eram entregues aos movimentos revolucionários locais. Os  panfletos que coalhavam as ruas impressionavam pelo senso de utopia. Naquele momento, parecia que tudo era possível. Portugal parecia prestes a inventar alguma nova forma de socialismo, impulsionada pelas forças agrupadas em torno do brigadeiro Saraiva de Carvalho, bem à esquerda do stalinismo de Vasco Gonçalves e do Partido Comunista Português. Muito mais que o maio de 1968, aquela foi a primeira e única revolução europeia autêntica da segunda metade do século XX. As transições democráticas domesticadas e cuidadosamente orquestradas da Espanha e da Grécia nem de longe se pareceram com isso.

O refluxo começou no fim daquele mesmo ano, ao que tudo indica como parte de um discreto acordo entre os EUA de Gerald Ford e a União Soviética de Leonid Brezhnev: as ex-colônias africanas se aliariam aos soviéticos, mas Portugal ficaria no campo da OTAN. O Partido Comunista, sem o qual uma revolução seria impossível, tirou o time de campo. Saraiva de Carvalho, isolado, foi afastado e depois preso e militares moderados encaminharam o país para um governo de caráter socialdemocrático e a integração ao Mercado Comum Europeu.

Impressiona ver como Portugal foi tão solidamente enquadrado na ordem europeia nas décadas seguintes. Quarenta anos depois, o país está preso na camisa de força da Troika e sacrifica possibilidades e liberdades à salvação do euro. O debate político não vai além de discutir o depois da vírgula no déficit público e o “Não há alternativa” de Margaret Thatcher se tornou um mantra do país, como de todo o continente. Será preciso esperar outros quarenta anos para que novos horizontes voltem a se abrir? Ou quarenta e oito?

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