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Fim de conflitos é pretexto para governo sírio atacar opositores

Perda de casas e propriedades ameaça afastar milhões de refugiados que estão no limbo no exterior

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As lojas de Amjad Farekh sobreviveram à longa guerra civil na Síria, mas não à nova paz instável que se instalou em algumas partes do país.

O governo explodiu recentemente várias propriedades na zona industrial de Qaboun, antigo enclave da oposição próximo à capital, disse o empresário exilado.

A destruição e o prejuízo se somaram a dezenas de outras operações de desobstrução em todo o país documentadas por ativistas e analistas, segundo os quais há um padrão preocupante.

Eles temem que o governo se aproveite da confusa situação no pós-guerra para endurecer seu controle nas cidades, demolindo propriedades em bairros e comunidades que se ergueram contra o presidente Bashar al-Assad, sob o disfarce de operações de desobstrução militar.

Entre setembro e dezembro de 2018, um relatório do grupo de pensadores Instituto Europeu da Paz acompanhou os anúncios do governo de 344 explosões, ostensivamente para liberar os destroços da guerra. “Cada um deles deu motivos como ‘conduzir um bombardeio’ ou ‘detonar quartéis-generais em túneis, explosivos e munição de organizações terroristas’”, descreve o relatório não publicado. “No entanto (…) essas explosões estão visando e destruindo moradias.” A análise baseou-se em imagens de satélite, vídeos de fonte aberta e fotos, e nos tuítes do próprio governo sírio.

Explosivos remanescentes de terroristas

Em um anúncio sobre Qaboun, o Ministério da Defesa informou em novembro passado que se livrara de “explosivos remanescentes de terroristas”. Os moradores filmaram, porém, a demolição de um prédio de apartamentos, as “Torres dos Professores”, por engenheiros militares.

Esse tipo de demolição ocorre em base “quase diária”, aponta o relatório, “usando diversas explicações, incluindo os extensos danos que o governo causou a propriedades com seus bombardeios indiscriminados”.

A perda de casas e propriedades ameaça afastar milhões de refugiados que estão no limbo no exterior, incluindo aqueles que poderiam pensar em voltar para o país quando a guerra civil de oito anos terminar.

Mais de 12 milhões de sírios deixaram suas casas: 5,6 milhões saíram do país e outros 6,6 milhões estão deslocados internamente, muitos porque eram apoiadores ou simpatizantes da oposição.

Honestos serão perdoados

Assad pediu aos refugiados que voltem para casa e prometeu que os “honestos” serão perdoados por se opor a ele. Mas centenas foram presos ao voltar, muitos torturados, outros recrutados, apesar de promessas de que não o seriam, ou assediados nas ruas.

Seu governo também usou leis habitacionais, incluindo 45 novos artigos aprovados durante o conflito, para confiscar propriedades de apoiadores dos rebeldes, fragmentando as comunidades que se opuseram a ele. “Apesar de uma quantidade limitada de discurso público para o retorno dos refugiados, Assad não quer na verdade que a maioria da população síria atualmente deslocada dentro e fora do país retorne”, afirmou Emma Beals, analista independente.

“Isso é demonstrado de muitas maneiras, como a prisão e o assédio de grande número de retornados, assim como um esquema de reconstrução que garante que os desalojados não possam voltar para suas propriedades.”

Farekh é um desses refugiados. Antes da guerra, sua família possuía terras e várias propriedades em Qaboun, mas ficaram com quase nada. “Agora, apesar de sermos os proprietários, não podemos voltar para nossa região porque o regime irá nos prender, por isso nossas propriedades não têm valor. Muitos que conheço tiveram de vender suas propriedades pela metade do preço.”

As autoridades apreenderam terras e um prédio durante a guerra. Como muitos refugiados, a família não tem os documentos que seriam necessários para pedir indenização ou reclamar as propriedades que restam, e não podem voltar à Síria para obter novos papéis.

Nove em cada dez sírios que deixaram o país não têm um documento de identificação e menos de um quinto tem registros de propriedades, segundo pesquisa do Conselho Norueguês de Refugiados.

A questão habitacional na Síria

A Síria tinha sérios problemas habitacionais antes da guerra civil. Eles contribuíram para o aumento das tensões, juntamente com a seca, a estagnação econômica e a repressão política, entre outros fatores, que explodiram no conflito em 2011.

Durante décadas, o desenvolvimento não havia acompanhado a enxurrada de moradores de aldeias que foram para as cidades. Muitos se instalaram em habitações “informais”, frequentemente sem documentação de propriedade. Marginalizados na economia antes da guerra, muitos moradores dessas áreas apoiaram a rebelião contra Assad.

Isso significa que viram combates intensos nas primeiras etapas da guerra e foram em parte expulsos de suas moradias. Isso também pode ter contribuído para o alto índice de desapropriação entre os refugiados sírios, com moradias confiscadas quando os apoiadores da oposição partiram ou nos anos seguintes. “Quando deixamos Aleppo, as forças a favor do regime confiscaram todas as propriedades de minha família e se mudaram para nossas casas”, recorda Abdulkareem al-Halabi, repórter do site de notícias Baladi. “Recentemente, antigos vizinhos nos disseram que um prédio onde tínhamos um apartamento está em leilão.”

Não há dúvida de que a reconstrução é extremamente necessária depois de anos de um conflito brutal. Ao todo, mais de um terço dos imóveis do país foi afetado, segundo estimativa do Banco Mundial em 2017, e mesmo para que uma fração dos sírios desalojados volte para casa é preciso construir ou reconstruir moradias.

Grupos da sociedade civil temem que Assad pretenda usar a reconstrução para privar ainda mais seus adversários e romper seus enclaves. O governo tem um histórico de habitação armada durante o conflito. A Human Rights Watch documentou demolições de propriedades a partir de 2012 e, enquanto a luta avançava, novas leis de propriedade foram aprovadas. Juntas elas dão ao governo amplos poderes para requisitar terras e propriedades e reordená-las para novos desenvolvimentos.

Os países ocidentais até agora se recusaram a dar verbas para a reconstrução, dizendo que não haverá dinheiro sem transição política, mas as autoridades sírias buscam financiamento privado, que lhes permitiria pôr de lado as preocupações humanitárias.

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