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Fim da farra

Nova lei australiana expõe multinacionais que transferem seus lucros a paraísos fiscais para escapar do Fisco

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Perdas. As economias nacionais deixam de arrecadar anualmente 492 bilhões de dólares devido a práticas de abuso fiscal – Imagem: iStockphoto
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O cerco está se fechando para as multinacionais. Após décadas de total descontrole em suas atividades, refletido no fato de pagarem poucos impostos, a cooperação internacional tem avançado nos últimos anos para garantir que cumpram suas obrigações fiscais. Sob a liderança da ­OCDE, mais de 50 países, incluindo o Brasil, implementam um imposto mínimo global sobre os lucros dessas empresas. No fim de 2023, a ONU abriu as negociações para uma convenção sobre tributação, que promete trazer todas as nações em posição de igualdade para o debate fiscal.

O caminho ainda é longo. De acordo com um estudo recém-publicado pela Tax Justice Network, os países perdem anualmente 492 bilhões de dólares em impostos de grandes multinacionais e dos super-ricos, principalmente devido às práticas de abuso fiscal. Muitas empresas transferem seus lucros dos países onde ocorre a economia real para paraísos fiscais, onde não são cobrados impostos sobre os ganhos. Para o Brasil, a estimativa de perdas é de 7,9 bilhões por ano.

A mais recente novidade na luta contra o abuso fiscal tem caráter nacional e vem do outro lado do mundo. Após anos de campanhas de sindicatos e da sociedade civil, uma legislação aprovada pelo Parlamento da Austrália no fim de novembro exigirá que as multinacionais com presença significativa no país informem publicamente os impostos pagos, os lucros, o número de trabalhadores e outras informações financeiras em uma ampla lista de paraísos fiscais. A legislação, conhecida como Declaração ­País por País (Country By Country Report), obriga as grandes empresas a revelarem quanto e onde estão pagando impostos sobre seus lucros. As multinacionais serão incentivadas a divulgar dados financeiros de todos os países onde operam, não apenas nos paraísos fiscais.

É o início de uma nova era na transparência fiscal global. A legislação da Austrália está à frente dos esforços da União Europeia e possui implicações globais, pois todas as multinacionais com operações no país e faturamento anual de ao menos 10 milhões de dólares australianos deverão reportar essas informações. Embora as empresas já preparem esses dados para a OCDE, eles são mantidos em sigilo. Com sua divulgação pública, esses dados poderão ser utilizados por autoridades tributárias, cientistas, jornalistas, investidores e ativistas de todo o mundo para monitorar o comportamento tributário e financeiro das grandes corporações.

Um estudo sobre a implementação dessa medida, elaborado pelo EU Tax Observatory, centro de pesquisa financiado pela União Europeia, estima que cerca de 50% das grandes empresas dos EUA e uma parcela significativa de multinacionais de países como China, Japão e Alemanha terão de divulgar informações sobre suas presenças em paraísos fiscais. Para o Brasil, o estudo prevê que sete companhias serão afetadas. Embora uma lista oficial ainda não tenha sido divulgada, é possível estimar algumas das empresas, considerando a presença do Brasil nos setores de mineração, energia e produção de alimentos na Austrália.

As empresas com presença na Austrália deverão informar os impostos pagos e os ganhos em todos os países onde atuam

A JBS, por exemplo, é a maior empresa de processamento de carnes e alimentos da Austrália. O governo australiano publica anualmente dados sobre os impostos pagos pelas maiores corporações que operam no país, incluindo a Flora ­Green Pty Ltd, principal empresa do grupo JBS na Austrália. Os dados mais recentes (2023) mostram que a companhia registrou uma receita total de 31,9 bilhões de reais, mas pagou apenas 39,1 milhões em Imposto de Renda, apresentando uma margem de lucro inferior a 1%. Nos relatórios da JBS na Austrália, sua taxa efetiva de imposto, que reflete o valor realmente pago, foi de 14%, em comparação com a taxa oficial de 30% no país.

A falta de transparência impede que saibamos por que a taxa de lucro e o pagamento de impostos são tão baixos. Com os relatórios a ser publicados na Austrália, começaremos a compreender com mais detalhes como a JBS é estruturada globalmente, onde realiza negócios e onde paga (ou não paga) impostos.

A elisão fiscal continua a ser um problema significativo, prejudicando as empresas responsáveis e o financiamento das políticas públicas. Em 2022, estimou-se que as multinacionais transferiram 1 trilhão de dólares para paraísos fiscais, o equivalente a mais de um terço de todos os lucros registrados fora dos países-sede. Os impactos do abuso tributário internacional são sentidos em todo o mundo, mas são especialmente devastadores no Sul Global, que possui menor capacidade de fiscalização e maior dependência das receitas fiscais provenientes das empresas.

O aumento da transparência na Austrália ajudará as autoridades de todo o mundo a identificar abusos cometidos e a responsabilizar as empresas. Assim, a nova lei servirá como um forte incentivo para que as multinacionais deixem de transferir lucros para paraísos fiscais e paguem seus impostos onde as atividades econômicas realmente ocorrem.

Esse avanço na legislação australiana se alinha com os recentes esforços do governo brasileiro em busca de uma taxação justa para os ricos, tanto no âmbito nacional, por meio da reforma do Imposto de Renda, quanto no plano internacional, com a pressão no G–20 por uma taxação para bilionários, que resultou em uma declaração ambiciosa do grupo nas ­reuniões no Rio de Janeiro. Precisamos seguir o exemplo da Austrália e avançar também na área de transparência fiscal. Somente com a união de esforços nacionais e internacionais será possível acabar definitivamente com a farra das multinacionais. •


*Mestre em Economia Política Internacional pela UFRJ, Livi Gerbase é pesquisadora para a América Latina e o Caribe no Centro Internacional de Pesquisa em Assuntos Fiscais Corporativos (CICTAR) e tem experiência em ONGs e governos com política fiscal, gestão e avaliação de políticas públicas.

Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fim da farra’

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