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Ferida aberta

As eleições locais agitam o caldeirão de ressentimentos no Kosovo

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Eleitores sérvios enfrentam as forças da Otan – Imagem: AFP
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Sentado atrás de uma mesa preta vazia, numa pequena sala caiada no norte do ­Kosovo, o prefeito da aldeia, Izmir Zeqiri, tenta acostumar-se com o brilho da atenção internacional. “Não era minha intenção ser uma celebridade”, diz, enquanto o celular toca repetidamente. “Achávamos que mais gente iria concorrer e não imaginávamos que poderíamos vencer.”

Não se trata de falsa modéstia. Zeqiri é um dentre algumas centenas de albaneses étnicos no município de Zubin Potok, de maioria sérvia, e sua candidatura nas eleições de abril foi um gesto simbólico. Mas quando o Serb List, partido apoiado por Belgrado que controla grande parte da vida pública nos municípios do norte, decidiu boicotar a votação e ordenou aos eleitores sérvios para seguirem o exemplo, Zeqiri foi lançado no centro de uma tempestade. Ele obteve 197 votos, com 6% de participação, 17 a mais que seu único adversário, por isso foi empossado. Os prefeitos albaneses também prestaram juramento nos outros três municípios do norte, depois de uma participação ainda menor. Os sérvios boicotadores, furiosos com a perspectiva de serem governados por albaneses étnicos, foram às ruas depois que o primeiro-ministro Albin Kurti ordenou que os novos prefeitos assumissem seus cargos. A tensão era tão grande que as autoridades tiveram de ser escoltadas até seus gabinetes por unidades especiais da polícia.

Na segunda-feira 29, as forças de paz da Otan, preocupadas com a escalada dos confrontos, enviaram tropas às prefeituras. Elas foram recebidas por manifestantes que incluíam homens mascarados com armas e explosivos. O símbolo Z, agora sinônimo de invasão da Ucrânia pela Rússia, também foi pintado em veículos. Trinta soldados da Otan ficaram feridos.

A violência alarmou os Estados Unidos, mais importante aliado internacional do Kosovo. Washington repreendeu Kurti por ordenar que os prefeitos assumissem seus cargos e pediu uma desescalada. Para enfatizar a mensagem, o embaixador dos EUA, Jeff Hovenier, anunciou que o Kosovo havia sido retirado de um exercício de treinamento militar conjunto e que as relações bilaterais foram prejudicadas. Os analistas estão surpresos com essa reação. “Não foi a polícia do Kosovo ou o governo que feriu dezenas de soldados da paz da Otan. Foram grupos sérvios armados”, disse Toby Vogel, analista de política regional. Os Estados Unidos e seus aliados isolaram o Kosovo quando disseram anteriormente que as eleições seguiram as leis do país, acrescentou ­Vogel. “Depois disso, acho que ­Kurti realmente não teve muita escolha a não ser apoiar a posse desses prefeitos.”

O Kosovo declarou independência da Sérvia em 2008, uma década após a campanha de limpeza étnica do presidente sérvio Slobodan Milosevic contra sua população de maioria albanesa. Isso culminou na guerra de 1998 e 1999, que acabou com uma campanha de bombardeios da Otan. A maioria dos países ocidentais reconhece a soberania do Kosovo, mas a Sérvia e seus aliados, Rússia e China, não. Os sérvios continuam a constituir a principal minoria de Kosovo, cerca de 5% da população, e são maioria nos quatro municípios do norte.

Jornalistas em campo relataram muitos ataques, ameaças e intimidações, que sugeriram mais do que uma revolta popular espontânea. Em Çabër, Eshref Ferizi, de 62 anos, acolheu amplamente a nova abordagem, apesar da violência. Ele esperava que isso tornasse a vida mais fácil no norte do ­Kosovo, em estado de limbo desde a guerra, sob o controle de fato de Belgrado. “Vivemos com uma insegurança enorme, em constante estado de estresse sobre o que vai acontecer”, disse, enquanto levava o neto à escola. “Nestes últimos 20 anos, nunca nos sentimos livres como o resto do Kosovo.”

Os sérvios não aceitam ser governados por albaneses

A última agitação pode ser atribuída a uma disputa sobre placas de carros, não a respeito de soberania. Em novembro passado, os sérvios nas instituições públicas do Kosovo aderiram a uma greve em protesto contra novas regras que exigem que todos os veículos exibam placas emitidas pelo Kosovo. Para muitos, usar placas emitidas em Pristina, a capital, equivale a reconhecer a independência do Kosovo.

Kurti, que assumiu o poder com uma campanha anticorrupção em 2021 com um recorde de 50% dos votos, aprovou as regras das placas. Parte fundamental de sua agenda de reformas incluiu uma posição de “reciprocidade” em relação à Sérvia, após mais de uma década de esforços para normalizar as relações sob os auspícios da União Europeia.

Vogel também acredita que, embora tenha havido expressões genuínas de raiva dos sérvios locais com a perspectiva de serem governados por prefeitos albaneses nos quais não votaram, está claro que ao menos parte da violência foi organizada e direcionada de outros lugares. “Nada realmente acontece nos municípios de maioria sérvia sem a aprovação ou orientação de Belgrado”, disse. “Isso não significa que tudo o que aconteceu durante as manifestações (…) foi ordenado diretamente por Belgrado. Mas nenhuma força política local genuína terá permissão para emergir, a menos que esteja totalmente alinhada.”

Após mais pressão dos líderes europeus e norte-americanos, Kurti indicou a realização de novas eleições locais nos municípios afetados, mas insiste que deve haver “um fim imediato da violência por parte das turbas patrocinadas por Belgrado”.

Por enquanto, o azul e o amarelo da bandeira do Kosovo tremulam pela primeira vez acima do principal prédio municipal de Zubin Potok. Mas seria fácil se perderem em meio ao vermelho, branco e azul sérvios que adornam quase todos os outros postes de luz e varandas ao redor da praça central da cidade. Diretamente em frente, o centro de saúde pública de três andares tem uma bandeira sérvia pendurada do telhado até a rua. Abaixo, dezenas de manifestantes se abrigam do sol em acampamentos improvisados e tocam música sobre o papel central do Kosovo no folclore sérvio. Uma manifestante, que não quis ser identificada, disse esperar que a polícia do Kosovo fosse embora. “Por que eles estão aqui? Este não é o lugar deles. O que aquela bandeira do Kosovo faz ali? Não queremos isso. Nós temos a nossa própria.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ferida aberta’

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