Mundo

assine e leia

Fenda aberta

Grupos palestinos reúnem-se no Cairo para aparar arestas, mas a divisão entre Hamas e Fatah continua profunda

Fenda aberta
Fenda aberta
Aceno. O Hamas está disposto a aceitar um governo tecnocrático temporário, como proposto por Donald Trump – Imagem: Saeed Jaras/Middle East Images/AFP
Apoie Siga-nos no

Sob a mediação do governo egípcio, diferentes grupos palestinos reuniram-se no Cairo, na sexta-feira 24, para tentar superar a grave fragmentação política em seus territórios. Pelo comunicado oficial divulgado após o encontro, é possível identificar dois grandes desafios. O primeiro é lidar com o plano de Donald Trump para o “fim da guerra”, que na prática impõe termos dos Estados Unidos para interromper o genocídio promovido por Israel. O segundo é reconstruir uma unidade nacional capaz de fortalecer uma agenda de resistência ao avanço israelense na colonização da Cisjordânia e de Gaza.

O plano de Trump pode tornar-se uma armadilha, já que oferece bases muito frágeis para o fim das operações militares israelenses. Na terça-feira 28, Israel violou mais uma vez o acordo e realizou o mais letal bombardeio em Gaza desde a assinatura do cessar-fogo. Os ataques mataram 104 palestinos, incluindo 46 crianças, e deixaram 253 feridos, segundo o Ministério da Saúde local.

Tel-Aviv justificou a ordem de “ataques imediatos e pesados”, nas palavras do premier Benjamin Netanyahu, sob a alegação de descumprimento do acordo pelo Hamas. Um sargento israelense teria sido abatido por combatentes do grupo palestino na região de Rafah, sob total controle das Forças de Defesa de Israel.

O analista palestino Muhammad Shehada cita, porém, relatos divergentes. O incidente em Rafah pode ter ocorrido após um veículo ter passado sobre explosivos não detonados, deixados sob as ruínas da guerra. Além disso, combatentes do Hamas teriam ficado “presos” em áreas ainda sob controle temporário israelense. “Ainda há células desconectadas ou encurraladas, que não são informadas sobre o dia a dia do cessar-fogo”, explicou. Na terça-feira 28, o próprio Hamas negou seu envolvimento: “Não temos qualquer conexão com o incidente em Rafah e reafirmamos nosso comprometimento com o cessar-fogo”.

O temor de que o acordo seja uma armadilha ganhou força após Trump adotar uma postura leniente diante das violações israelenses. Ainda na terça 28, o presidente dos EUA afirmou que o cessar-fogo não estava em risco e acrescentou que Israel tinha o direito de “bater de volta” no Hamas, ainda que a desproporcional retaliação tenha causado a morte de mais de uma centena de palestinos. No dia seguinte, Israel anunciou o fim dos ataques, embora o chefe do Estado-Maior, Eyal Zamir, tenha alertado que “a guerra ainda não acabou”.

Em um horizonte mais amplo, os grupos reunidos no Cairo – incluindo ­Hamas, Jihad Islâmica Palestina e Frente Popular para a Libertação da Palestina – destacaram a necessidade de um diálogo nacional abrangente para unificar todas as facções palestinas e reativar a Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Assim, seria possível consolidar uma estratégia nacional compartilhada para conter o avanço de colonos sobre Gaza e Cisjordânia e resistir às tentativas de deslocamento forçado promovidas pelo governo israelense.

Mais uma vez, Israel viola o cessar-fogo. E o presidente dos EUA fecha os olhos

Na avaliação de Rula Jamal, advogada de direitos humanos e codiretora do Instituto Palestino para Diplomacia Pública (PIPD, na sigla em inglês), os termos impostos por Trump podem ter impulsionado esse diálogo. “A possibilidade de mais um mandato colonial na Palestina, por parte dos EUA e de outros Estados ‘amigos’ (Catar, Turquia e Egito), que tratam a reconstrução de Gaza como um grande projeto de investimento, representa uma ameaça tanto para o Fatah quanto para o Hamas. Eles sabem muito bem que, se não implementarem mudanças, perderão seu poder e o pouco controle que ainda têm”, afirma, em entrevista a ­CartaCapital. Essa sombria perspectiva, acrescenta a especialista, pode realmente levar esses grupos a aceitar um governo tecnocrático, como proposto por Trump.

As facções reunidas no Cairo concordaram em transferir temporariamente a administração de Gaza a um comitê de figuras palestinas independentes e apoiaram a criação de um órgão internacional para supervisionar a reconstrução. O Fatah, ausente da reunião, emitiu um comunicado próprio, e o atual presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP) e da OLP ressaltou que qualquer unidade nacional deve apoiar-se nas estruturas políticas palestinas existentes.

Para Jamal, a construção de um pacto de unidade nacional esbarra nas ­atuais estruturas de poder. No domingo 28, Mahmoud Abbas, líder do Fatah e presidente da ANP, indicou Hussein ­Al-Sheikh, vice-presidente da OLP, como seu sucessor político. “O problema é que Hussein, recém-nomeado de forma arbitrária, e Majed Faraj, chefe da inteligência da Autoridade Nacional Palestina, agindo sob ordens de Abbas e instruções dos EUA, não inspiram otimismo.” Segundo ela, ambos não representam os palestinos das ruas. “A necessidade de unidade é uma demanda antiga do povo, mas não sob a liderança da desgastada ANP.”

O problema é que as mudanças são urgentes. Gaza tenta reerguer-se após um conflito que já deixou 70 mil mortos e destruiu quase 90% de sua infraestrutura. Na Cisjordânia, a colonização israe­lense também se intensificou. Segundo um relatório do Escritório da ONU para Assuntos Humanitários nos Territórios Palestinos Ocupados, divulgado em 16 de outubro, a violência no território “governado” por Abbas só aumenta. Apenas em 2024, Israel demoliu mais de 4,8 mil edificações, e ataques do exército e de milícias de colonos mataram 498 pessoas, além de provocar o deslocamento interno de quase 40 mil habitantes.

Rula, que atua na frente internacional de advocacy pela Palestina, defende que o foco deve ser o desmantelamento do projeto colonial sionista, com a responsabilização de Israel, além da imposição de embargos a armas e recursos energéticos. Ela ressalta, porém, que isso não substitui o fortalecimento interno. “Em nível nacional, o movimento precisa seguir por caminhos alternativos que devolvam o poder ao povo, por meio de iniciativas de sumud (resiliência palestina) e campanhas pelos direitos dos prisioneiros políticos. Ao reforçar nossa coesão social, poderemos manter viva a luta contra o colonizador.” •

Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fenda aberta’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo