Mundo
Falsificação histórica
A nova cruzada da direita britânica é negar o peso da escravidão e do domínio colonial na Revolução Industrial


A Grã-Bretanha administrou durante séculos um império que em seu apogeu, há cem anos, ocupava quase um quarto da área terrestre do mundo. Se acreditarmos na Medição Imperial, um relatório divulgado pelo direitista Instituto de Assuntos Econômicos (IEA, na sigla em inglês), o impacto econômico líquido desse vasto império sobre a Grã-Bretanha foi, no entanto, insignificante, até mesmo negativo. Se pensávamos que o império afetou profundamente a indústria, o comércio e as instituições financeiras britânicas, com a escravatura como parte inerente da equação, impulsionou a Revolução Industrial e financiou a então maior marinha do mundo durante 150 anos, é melhor repensarmos. Segundo a IEA, a contribuição do comércio transatlântico de escravizados para a economia britânica foi superada pela produção nacional de cerveja e pela criação de ovinos. A “carga” fiscal para defender esse império pouco lucrativo é inexpressiva. Em vez disso, foi a economia de mercado livre que desencadeou o crescimento econômico da Grã-Bretanha – verdade esta que deve ser reafirmada antes que os marxistas e as ex-colônias em busca de reparações comecem a controlar a discussão.
É uma reformulação risível da história que deveria ter sido ignorada como uma bobagem ideológica interesseira. Mas entra em cena a secretária de Negócios e Comércio e aspirante a líder conservadora, Kemi Badenoch, que assumiu a responsabilidade de apoiar essa “investigação” do IEA. Ela disse a uma plateia de diretores de serviços financeiros numa conferência em Londres: “Preocupa-me quando ouço falarem sobre a riqueza e o sucesso do Reino Unido como resultado do colonialismo, do imperialismo, do privilégio branco ou do que quer que seja”. Se acreditarmos em alguma parte dessa história sobre a opressão e a exploração serem a causa da riqueza britânica, então as soluções para o “nosso problema de crescimento e produtividade” serão ainda piores. Foram os “mercados livres e as instituições liberais” que impeliram a Revolução Industrial e o crescimento econômico subsequente.
Embora, certamente, eles fizessem parte de um coquetel de razões para a ascensão da Grã-Bretanha à preeminência econômica, eram apenas uma parte. Pesquisas históricas recentes, alegremente rejeitadas por Kristian Niemietz, da IEA, têm descoberto uma montanha de evidências que dão cada vez mais importância ao império, e em particular à escravidão, como importantes motores da Revolução Industrial e da evolução econômica britânica.
Vejamos a inovação e as invenções corretamente celebradas – a máquina de fiar (spinning Jenny) de James Hargreaves, de 1764, a máquina de fiar hidráulica (water frame) de Richard Arkwright, patenteada em 1769, e a spinning mule de Samuel Crompton, introduzida em 1778 – que, juntas, permitiram aproveitar o delicado, mas resistente algodão barbadense e produzi-lo em escala. Na virada do século XVIII, a região de Lancashire emergiu como o principal centro de produção de algodão de alta qualidade da Europa, utilizável com outros fios e com tinturas e estampas resistentes. Era uma posição de domínio global que a produção de algodão de Lancashire, logo acompanhada pela de West Yorkshire, reforçaria ao longo do século seguinte.
Mas, como escrevem Maxine Berg e Pat Hudson em seu brilhante livro Slavery, Capitalism and the Industrial Revolution (Escravidão, Capitalismo e a Revolução Industrial), não foi por acaso que tudo começou a poucos quilômetros do maior porto de escravos da Europa, Liverpool. Ou que o fino algodão barbadense tenha florescido nas plantações escravistas da Grã-Bretanha em Barbados e em outras partes das Índias Ocidentais. Ou que grande parte do financiamento para investir nessas máquinas inovadoras caras, mas altamente lucrativas, viesse de comerciantes de Liverpool, cujas fortunas tiveram origem no comércio transatlântico.
Numa investigação minuciosa, eles situam a escravatura no centro não só da industrialização inicial, mas do crescimento de serviços como bancos e seguros. Nas últimas décadas do século XVIII, demonstram que as Índias Ocidentais equivaliam à Europa como maior parceiro comercial da Grã-Bretanha. A importância do algodão foi precedida pelo açúcar cultivado por escravos, que se tornou alimento básico nacional. Tudo isso gerou um grande boom na navegação britânica, de 1 milhão de toneladas e 50 mil marinheiros na década de 1780 para 2,5 milhões de toneladas e 130 mil marinheiros na década de 1830, com o crescimento impulsionado pelo comércio das plantações atlânticas.
O comércio de escravos esteve no centro não só da industrialização, mas do crescimento dos serviços financeiros
Os navios e suas cargas, fossem de escravos, de açúcar ou de algodão, precisavam de proteção, gerando uma grande indústria de seguros marítimos. As refinarias de açúcar eram propensas a pegar fogo facilmente – havia mais de cem só em Londres na década de 1780 –, levando à necessidade de companhias especializadas em seguros contra incêndios. Nenhum relato do boom na indústria têxtil nos dois lados dos Montes Peninos ou na cidade de Londres está completo sem o império e o comércio de escravos, que mesmo após a abolição, em 1833, continuaria como negócio de servidão não remunerada.
Ninguém argumenta que a escravidão causou a Revolução Industrial, muito menos Berg e Hudson. Mas minimizar e abstrair, como tenta Niemietz, o impacto econômico das plantações escravistas de açúcar e, depois, de algodão, e das indústrias que delas irradiavam, é claramente inadmissível. Também é verdade que as instituições liberais, como a independência judicial e o Estado de direito, ajudaram o capitalismo inicial e foram adicionalmente fomentadas pela criação de um mercado interno unificado.
A abordagem liberal da Grã-Bretanha à imigração, ao acolher inventores, cientistas e engenheiros de toda a Europa, instigou os fogos da invenção e da produção, como argumenta o historiador econômico Joel Mokyr em The Enlightened Economy (A Economia Esclarecida). Badenoch seria mais convincente se, ao mesmo tempo que exalta tais fatores liberais, reconhecesse o papel crítico da escravatura, mas também que seu próprio governo dificilmente é amigo da independência judicial, celebra a saída do maior mercado único do mundo e dificilmente poderia ser mais hostil à imigração – princípios iliberais muito diferentes daqueles que, segundo ela pensa, promoveram a Revolução Industrial.
O império afetou profundamente a economia britânica, sem dúvida. Não menos importante, foi uma fonte de lucros e rendas exuberantes e fáceis que se tornaram uma referência que a maioria das empresas britânicas visa até hoje, assim limitando os projetos em que investem. A indústria britânica ainda estava protegida por tarifas imperiais preferenciais em 1970. O império absolveu os britânicos de pensar em como desenvolver a economia nacional, e o mercado parecia conseguir isso magicamente por si só. Esse pensamento mágico é agora integrante do nosso declínio precipitado, e a IEA é um de seus principais defensores, revelando uma ignorância deliberada que vai além da história. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Falsificação histórica
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