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Fadiga de material?

Após 20 anos no poder, Recep Erdogan corre riscos reais de perder as próximas eleições na Turquia

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Fadiga de material?
Terreno perdido. O presidente turco aparece atrás nas pesquisas, mas controla a máquina e tem grande chance de reverter a situação até maio – Imagem: Presidência da Turquia
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Nos arredores da capital turca, em um distrito eleitoral disputado, dois jovens discutiam, em uma loja de doces, com o cheiro de açúcar e manteiga quente no ar, sobre a eleição que se aproximava. Iflah Oluklu, rapaz magro de 23 anos com cabelo descolorido, jeans preto e camiseta preta justa, repreendeu seu amigo por desrespeitar alguns apoiadores do presidente turco, enquanto eles jogavam um videogame online. Os dois amigos estão divididos em suas lealdades. Oluklu descreveu-se como um nacionalista e disse que pretendia apoiar ­Recep Tayyip Erdogan em uma eleição presidencial fortemente disputada, em 14 de maio. “Erdogan é como uma figura paterna para nós, na Turquia. Ele dirige o país há 20 anos. Não acho impossível tirá-lo da liderança, mas, principalmente com esta oposição, ninguém pode substituí-lo.”

Seu amigo Kaan, antigo apoiador da principal legenda de oposição, o Partido Republicano do Povo (CHP), que não quis dar seu sobrenome, discordou silenciosamente. “Simplesmente, não acho que este país seja bem governado, e quero que as vozes sejam ouvidas pelos que estão no poder”, disse. “Eu realmente acho que este pode ser o fim de ­Erdogan”, acrescentou com cautela. “Ou, ao menos, espero que sim.”

Depois de duas décadas no poder, ­Erdogan enfrenta um desafio concentrado. As pesquisas mostram que seu principal rival, Kemal Kiliçdaroglu, ex-contador e antigo funcionário público, tem uma ligeira vantagem. A votação apresenta uma escolha difícil para o público turco, entre Erdogan e a ­possibilidade de reelegê-lo, consolidando o governo de um único homem, ou seus oponentes, que prometeram reformar o sistema presidencial e devolver a Turquia à democracia parlamentar.

A oposição turca, uma coalizão de seis partidos liderada por Kiliçdaroglu e unida pelo único objetivo de remover ­Erdogan do poder, acredita que os problemas enfrentados pelo país devem facilitar essa escolha. Uma profunda crise econômica e a resposta medíocre do governo a dois fortes terremotos em fevereiro encerraram 20 anos sob Erdogan e seu Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), que parece prestes a sofrer perdas nas eleições parlamentares realizadas em conjunto com a votação para presidente.

O pai de Kaan, Hasan, alisou a fina malha de cortinas penduradas em sua loja de tecidos ao lado da doceria de Oluklu, enquanto explicava por que não votaria nem no AKP nem em Erdogan pela primeira vez em sua vida. “É simples, ele tirou todo o dinheiro do meu bolso”, disse. “O tecido que eu vendo aqui, para comprar no atacado custa cinco vezes mais do que antes. E meu aluguel mais que dobrou.”

As opiniões de Hasan sobre a economia se equiparam àquelas do partido pró-empresas Democracia e Progresso ­(Deva), liderado por um ex-alto funcionário do AKP. “A situação em relação a esta economia é clara, assim como a experiência desta presidência. Olhe para os indicadores econômicos – inflação, distribuição de renda, pobreza. Tudo isso se deteriorou significativamente sob este sistema presidencial”, disse Ibrahim Çanakci, cofundador da Deva e ex-funcionário do Tesouro turco. “Erdogan costumava culpar ministros, instituições ou forças estrangeiras. Mas agora os eleitores veem claramente que, quando se trata deste sistema de governo de um homem só, há apenas um responsável por este resultado.”

A inflação e a estagnação econômica motivam o voto pela mudança

Mas colocar um fim abrupto a ­duas décadas de governo de Erdogan e do AKP não será tarefa simples. Embora muitas pesquisas indiquem que a coalizão de oposição poderá obter a maioria no Parlamento, a disputa pela presidência continua acirrada. Sem ganhar a presidência e o Parlamento, a oposição será incapaz de decretar as amplas reformas constitucionais prometidas. O risco de Erdogan permanecer como presidente, mesmo que seu partido sofra uma derrota parlamentar, pode concentrar ainda mais o poder em torno da presidência, anulando quaisquer ganhos da oposição.

Onursal Adigüzel, deputado e defensor ferrenho de Kiliçdaroglu, não se preocupa. Ao falar de um escritório de campanha improvisado da oposição decorado com pôsteres beatíficos de ­Kiliçdaroglu reunido com trabalhadores rurais e jovens, disse que o CHP triunfará ao atingir aposentados e eleitores indecisos. “Pessoalmente, acredito que será mais fácil para nós vencermos a eleição presidencial do que o voto parlamentar”, disse. “Dois anos atrás, Kiliçdaroglu não era considerado um forte rival de Erdogan, e agora lidera as pesquisas. Mas, acima de tudo, é alguém que pode trazer paz à Turquia e não usa uma linguagem polarizadora como Erdogan.”

Solicitados a definir o apelo da candidatura de Kiliçdaroglu, a maioria dos eleitores e integrantes de sua coalizão disseram que ele fornece uma alternativa a ­Erdogan e representa a mudança. Poucos conseguiram explicar o que poderia encorajar eleitores indecisos ou apoiadores vitalícios de Erdogan a escolhê-lo. O político de 74 anos também enfrentou críticas públicas de seu principal parceiro de coalizão, o nacionalista IYI Parti (Bom Partido), por ter forjado seu caminho para a candidatura, forçando outros a desistirem da disputa, apesar de as pesquisas mostrarem que todos os demais candidatos potenciais tinham mais chances de vencer o atual presidente. ­“Erdogan perderá e Kiliçdaroglu vencerá esta eleição, estamos confiantes nisso”, disse Çanakci. “A decisão sobre o candidato está tomada. Não adianta questionar se ­Kiliçdaroglu é adequado. Em nossa opinião, ele se encaixa perfeitamente no cargo.”

Nem todos os eleitores estão convencidos. Para aqueles como o primo de Oluklu, Kamuran Özcip, que votou em Erdogan em todas as eleições de sua vida adulta, a perspectiva de acabar com o governo do presidente é impraticável. “Gosto de Erdogan, talvez seja sua política, talvez seja sua personalidade. É um estadista muito experiente. Özcip ficou perplexo com a oferta de mudança radical da oposição. Ele prefere, segundo disse, esperar que Erdogan possa melhorar as coisas. “Todo mundo quer mudança e, honestamente, não sei o que eles estão pensando. Se Kiliçdaroglu vai vencer a eleição, é completamente imprevisível.” •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Fadiga de material?’

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