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Com Trump, os EUA trocam de vez o idealismo pelo ressentimento e a liderança global pelo provincianismo

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Abismo e espelho. O republicano prega o ódio e a intolerância e angaria o apoio até de suas futuras vítimas – Imagem: Redes Sociais/Donald Trump 2024
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Doze anos atrás, uma eternidade na política dos Estados Unidos, o Partido Republicano se recuperava da quarta derrota eleitoral presidencial em seis tentativas e decidiu que precisava ser muito mais gentil com os eleitores cujos votos tentava atrair. Chega de demonizar os migrantes, o partido resolveu – era hora de uma reforma abrangente da imigração. Chega de linguagem humilhante que afasta mulheres e minorias – precisava de mais delas a concorrer a cargos públicos. “Precisamos fazer campanha entre hispânicos, negros, asiáticos e gays norte-americanos, e demonstrar que também nos importamos com eles”, afirmou o partido em uma dura autópsia após a reeleição de Barack Obama em 2012.

Apenas uma voz implorou para discordar: Donald Trump. “O @RNC (Comitê Nacional Republicano) tem um último desejo?”, perguntou em um tuíte. Sua objeção recebeu pouca atenção à época, mas não demorou muito para ele se oferecer como prova física de que aquela autópsia estava errada. Ao anunciar sua primeira campanha para presidente, em 2015, o magnata chamou os mexicanos de estupradores e criminosos. Ele menosprezou uma moderadora de tevê, Megyn Kelly, em seu primeiro debate de candidatos republicanos e disse que ela tinha “sangue saindo por onde quer que fosse” e depois deu a entender que era uma “vagabunda”. Também propôs que os migrantes fossem deportados em massa e os muçulmanos, proibidos de entrar no país. Nenhum candidato presidencial sério jamais havia falado dessa maneira, e durante vários meses os republicanos tradicionais consideraram sua abordagem um suicídio eleitoral. Mesmo quando ficou claro que Trump poderia receber a nomeação do partido, eles ainda temiam que a candidatura fosse por água abaixo, pois os eleitores indecisos iriam “afastar-se dele em massa”, como disse um pilar do partido, Henry Barbour.

Então Trump venceu – e a política norte-americana não foi mais a mesma desde então. O país não foi mais o mesmo desde então. É verdade, os Estados Unidos nunca foram exatamente o farol brilhante que eles próprios se imaginam. No cenário internacional, o país tem sido frequentemente beligerante, prepotente, caótico, disfuncional e indiferente ao sofrimento das populações de nações distantes, características que guardam alguma semelhança passageira com o estilo de liderança de Trump. Mas tem sido, há mais de um século, o porta-estandarte de uma certa visão elevada, um promotor de alianças estratégicas entre nações democráticas igualmente avançadas, com a intenção de estender sua presença econômica, militar e cultural pelos continentes.

Depois de uma Presidência de Trump e às vésperas de outra, agora está claro que a poderosa superpotência global de outrora permite que seu olhar se volte para dentro, para se alimentar mais de ressentimento do que de idealismo, para pensar menor. O sentimento público, não apenas a classe política, se percebe ameaçado pelo fluxo de migrantes que antes eram considerados a força vital do país. O comércio global, artigo de fé para os defensores do livre-mercado e arquitetos da Pax Americana do pós-Guerra, agora é um câncer a corroer a prosperidade interna, sua própria invasão estrangeira. Alianças militares e diplomacia não mais comandam o consenso entre partidos da era da Guerra Fria, quando se podia confiar que a política “pararia na beira da água”, na famosa formulação do senador Arthur Vandenberg, da era Truman. Hoje, a política não para por nada, por razão nenhuma. E as alianças são para otários.

Grande parte da população perdeu a fé no american dream

A eleição deste ano foi uma disputa entre uma visão unificadora e consensual apresentada por Kamala Harris – e por aquele documento de autópsia republicana da era pré-Trump – e a visão totalmente mais sombria do ex-presidente, do “nós contra eles”, da “soma zero”, um mundo onde ninguém pode vencer sem que outro se torne perdedor e a vingança é um prato que se come bem quente. A disputa poderia ter sido para qualquer lado – tem havido muita conversa sobre um resultado diferente com outra candidata democrata, ou com um processo diferente para selecioná-la. Ainda assim, o fato de a visão de soma zero ter-se mostrado tão sedutora diz algo poderoso sobre o colapso dos ideais estadunidenses e o pessimismo e a raiva que tomaram conta de grandes áreas do país.

Em 2016 e 2020, essa raiva limitou-se em grande parte à classe trabalhadora branca, que enfrentava um futuro sombrio sem os empregos na indústria. Ela agora se espalhou para grupos antes desprezados por Trump, ou abertamente rejeitados: latinos, jovens, negros. Kelly, a personalidade da tevê memoravelmente insultada por Trump em sua primeira campanha, foi cabo eleitoral dele na Pensilvânia nos últimos dias da última campanha. Até mesmo migrantes sem documentos, ameaçados de deportação em massa, têm expressado apoio cauteloso ao magnata por acreditarem que ­suas políticas econômicas vão melhorar suas perspectivas, apesar dos riscos.

À primeira vista, é uma situação desconcertante. Como tantos norte-americanos puderam votar contra seus próprios interesses, se está claro – tanto pela experiência anterior quanto pelas intenções declaradas do eleito e seus aliados – que os principais beneficiários do novo governo provavelmente serão os da classe bilionária. Quando as comunidades deprimidas e descontentes do “cinturão da ferrugem” podem esperar pouco ou nada do alívio que Trump promete há anos, mas falha em entregar? A resposta tem muito a ver com a mentalidade de soma zero que Trump vendeu com tanto sucesso.

Pesadelo. O otimismo do pós-guerra deu lugar a uma visão sombria baseada no temor da decadência imperial – Imagem: iStockphoto

Cidadãos em todo o país perderam a fé no sonho americano: a ideia de que trabalho duro e desejo de se aperfeiçoar bastam para subir na escala social, ter uma casa e depositar as bases para o sucesso dos filhos e netos. Eles perderam a fé porque o sonho simplesmente não corresponde à experiência vivida.

A maioria dos empregos nos EUA exige alguma qualificação além do ensino médio, mas a faculdade é vertiginosamente cara e as taxas de evasão são altas o suficiente para impedir muitos de nem sequer começar. A dívida médica em um país sem um serviço nacional de saúde é galopante. A propriedade de uma casa está simplesmente fora de alcance. Quando pensam em prosperidade e sucesso, o que muitos veem é um clube exclusivo beneficiário de gerações de riqueza, moradores de grandes cidades cada vez mais caras, com flexibilidade financeira para concluir a faculdade, encontrar um emprego bem remunerado e dar entrada em uma casa.

A armadilha está aí, como Trump gosta de dizer. O jogo é manipulado e, se você não for um integrante do clube por nascimento, suas chances de ser admitido serão mínimas. Nessas circunstâncias, a promessa democrata de liderança consensual soa amplamente vazia. O consenso, sem dúvida, rompeu-se há muito tempo, quando o estouro da bolha imobiliária, no início dos anos 2000, deixou muitos aspirantes a proprietários de imóveis paralisados por dívidas e levou à mais profunda crise econômica desde a Grande Depressão. Ele quebrou totalmente, de novo, durante a pandemia de Covid, quando a economia estagnou, o desemprego disparou e os preços dos bens de consumo diário ficaram descontrolados, de forma alarmante. Os democratas controlaram a Casa Branca por 12 dos últimos 16 anos, mas sua ideia de consenso não conseguiu ir muito além dos limites das grandes cidades.

Muito mais atraentes são as promessas de retaliação de Trump, de destruir todo o sistema e começar tudo de novo. Essas promessas também podem mostrar-se vazias com o tempo, mas para aqueles focados temporariamente em política, enquanto lutam para pôr comida na mesa, parecem fortalecedoras, embora passageiras. Em um mundo de soma zero, culpar os migrantes pelos problemas parece uma espécie de vitória. Significa que algum outro grupo está no fundo da pilha social, para variar.

Hoje, a política dos EUA é movida pelo poder irrestrito do dinheiro

Sobre esse quadro sombrio está a lenta implosão dos dois principais partidos políticos. As coligações mantidas por republicanos e democratas sempre foram assuntos complicados: um casamento estranho de grandes empresas e fundamentalismo cristão à direita. E, à esquerda, uma colcha de retalhos de trabalhadores sindicais, minorias raciais, intelectuais e, durante um longo tempo, segregacionistas sulistas da velha guarda.

Agora, o que é mais aparente não é a complexidade, mas a fraqueza. O Partido Republicano foi tão impotente para impedir a tomada hostil de Trump em 2016 quanto os democratas foram para manter sua base de apoio nos estados do “muro azul” na parte norte do Meio-Oeste – Wisconsin, Michigan e Pensilvânia.

Na verdade, o que move a política dos EUA atualmente é o poder irrestrito do dinheiro, grande parte administrado por grupos fora do controle do partido, que não precisam declarar suas fontes de financiamento e podem ou não fazer os candidatos avançarem, a depender da disposição em seguir um determinado conjunto de prescrições políticas. A influência de grupos de interesses especiais é um problema antigo na política norte-americana. Pense no lobby da indústria farmacêutica para manter os preços dos medicamentos mais altos do que em qualquer outro país ocidental, ou no Comitê Americano-Israe­lense de Assuntos Públicos a gastar dezenas de milhões de dólares para manter os críticos de Tel-Aviv fora do Congresso.

Higienização. O Partido Democrata, de Harris, se afastou do eleitor comum – Imagem: Saul Loeb/AFP

Mas a situação piorou exponencialmente desde a decisão Citizens United (Cidadãos Unidos) da Suprema Corte em 2010, que permitiu um crescimento sem precedentes de “dinheiro obscuro”, fundos de lobby não rastreáveis que ultrapassam em muito qualquer valor que os candidatos conseguem levantar em seus próprios nomes e influenciam o jogo político na mesma proporção. Isso também deu uma vantagem a um demagogo como Trump, cujas vulgaridade e fanfarronice servem como distrações úteis de uma agenda política favorável às empresas, impulsionada em grande parte por cortes de impostos, desregulamentação e o desmantelamento do “Estado administrativo”. Os democratas, por sua vez, podem falar o quanto quiserem sobre servir aos interesses de todos, enquanto dependem de dinheiro obscuro que representa os interesses de Wall Street, grandes empresas de tecnologia e muito mais, e estão fadados a parecer hipócritas e insinceros como resultado.

Duas gerações atrás, os avatares do movimento pelos direitos civis não tinham ilusões sobre a natureza brutal das forças que impulsionavam a sociedade estadunidense – “O mesmo velho plano estúpido / De cão comendo cão, de poderosos esmagando os fracos”, como escreveu Langston Hughes em seu famoso poema Let America Be America Again (Deixe a América Ser Novamente a América). A esperança então era que este fosse ao menos um problema corrigível, que os oprimidos pudessem resistir aos seus opressores e criar um mundo mais justo e equitativo.

Ninguém imaginava naquela época, no entanto, que os próprios oprimidos – a classe trabalhadora, os jovens negros e latinos descontentes, até mesmo os trabalhadores braçais sem documentos – um dia apoiariam a ascensão de um governo autocrático disposto a derrubar todos os princípios sagrados da vida pública, e até mesmo a própria Constituição, com sua promessa de criar “uma união mais perfeita”. Mas aqui estamos. Em janeiro de 2021, na posse de Joe Biden, a jovem poeta Amanda Gorman invocou o espírito da era dos direitos civis ao descrever “uma nação que não está quebrada, mas simplesmente inacabada”.

Sua fé parece agora equivocada. Os Estados Unidos que pensávamos conhecer estão realmente quebrados, e podem muito bem estar acabados. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Faça a América pequena’

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