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Êxodo e martírio

Se os palestinos tivessem direito a paz e liberdade, a história seria outra

Palestinos acampam na fronteira com o Egito, que se recusa a receber refugiados – Imagem: Mohammed Abed/AFP
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Na história mítica dos hebreus antigos, o Êxodo, a saída do Egito rumo à Terra Prometida, veio a significar o caminho da liberdade. Na história real, atestada pela historiografia e pela arqueologia, diz-se que na região da Palestina antiga ocorreram vários êxodos, de diferentes grupos, normalmente dominados e explorados por pequenos reinos locais e também pelos impérios egípcio e, mais tarde, dos assírios e caldeus.

A história e a arqueologia dizem também que muitos desses grupos eram chamados de habiru, palavra que significava muitas coisas, como escravos e servos fugitivos, rebeldes, trabalhadores migrantes e nômades. O termo hebreu teria derivado da palavra ­habiru. Esses grupos estão na ontogênese dos povos cananeus, israelitas e judeus.

Entre as várias formações da Palestina antiga, surgiram dois reinos separados e vizinhos. Ao norte, nas últimas décadas do século X antes de Cristo, surgiu o reino de Israel, com capital na Samaria. Ao sul surgiu o reino de Judá, por volta de meados do século IX a.C. Sua capital era Jerusalém. Em 722 a.C., o reino de Israel foi tomado e destruído pelos assírios. Sua população foi deportada e parte dela se refugiou em Judá. Jerusalém também foi assediada pelos assírios, mas terminou por fazer um pacto de submissão.

Em 586 a.C., Jerusalém foi tomada e destruída pelos babilônios e os judeus foram levados como cativos por Nabucodonosor. Depois de serem libertados por Ciro, o Grande, Jerusalém e o templo foram reconstruídos com o auxílio dos reis persas. Mais tarde, a capital sofreu duas outras destruições pelos romanos: a primeira, no ano 70, por Tito, e a segunda, no ano 134, por Adriano, ocorrendo a grande diáspora. Séculos depois, os judeus sofreram a grande tragédia do Holocausto, mais uma dura réplica da história. Esses reveses constituíram a admirável resiliência desse povo.

Com o estabelecimento do mandato britânico sobre a Palestina ­(1923-1948), o império começa a patrocinar o deslocamento de judeus para a região, processo que se intensifica na Segunda Guerra Mundial e se sacramenta em 1948 com a criação do Estado de Israel. Ninguém de bom senso pode negar aos judeus o direito de ter seu Estado. O problema é que a ocupação do território e a construção do Estado ocorreram sob a égide da expropriação de terras, deslocamentos de populações locais, destruição de vilas, violência e terror. As terras dos palestinos foram roubadas, seus pomares, videiras e oliveiras foram tomados e esse povo foi privado dos seus frutos, dos seus rebanhos, de sua água e de suas casas. Foi humilhado, desprezado, diminuído, espezinhado, visto como segunda categoria, semi-humano e, muitas vezes, como descartável.

Esse processo sedimentou ressentimentos, vergonha, dor e ódio. E dele emerge o sentimento de vingança, a opção pela violência, que fomenta o terrorismo. Os atos de grupos palestinos, do Hamas, da Jihad Islâmica, contra civis judeus, não se justificam, mas precisam ser compreendidos. Suas motivações devem ser entendidas. Se não houver uma reparação histórica, se os palestinos não tiverem seu Estado, o Hamas pode até ser eliminado, mas o terrorismo renascerá em outros grupos. Se a história dos palestinos tivesse sido outra, se tivesse sido uma história de terra e liberdade, de paz e respeito, os grupos terroristas não teriam a força do apelo religioso, da guerra santa. O mundo ocidental, os Estados Unidos, as grandes potências e a ONU precisam reconhecer as causas dessa violência e reparar seus erros, pois são erros criminosos.

Os EUA e a ONU precisam reconhecer a causa da violência e reparar seus erros

Os palestinos dos séculos XX e XXI são os habirus antigos, os hebreus originários, são um povo do Êxodo do nosso tempo. Mas o Êxodo dos palestinos não é um caminho para a liberdade e para a Terra Prometida. É um caminho de perda de terras e de lares, é um caminho de dor e de sangue, de bombas e de morte. É um caminho sem futuro e sem esperanças. Israel impõe aos palestinos o que os assírios antigos impuseram ao reino de Israel e o que os babilônios impuseram a Judá e Jerusalém.

O governo extremista de Benjamin Netanyahu alimentou o radicalismo do Hamas por não querer a solução do conflito. Alimenta o ódio para viver do ódio. Os grupos religiosos ortodoxos e de extrema-direita de Israel têm uma visão de guerra santa, de extermínio dos palestinos. Sob a proteção do exército, continuam a tomar as casas e as terras na Cisjordânia. Gaza é um campo de concentração e, agora, de extermínio a céu aberto.

O ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, profanou a mesquita de ­Al-Aqsa há poucas semanas com um grupo armado. A mesquita é um dos lugares mais sagrados para os muçulmanos. Na ocasião, lideranças moderadas de Israel advertiram que o ato desencadearia violência. Não por acaso, a ação do Hamas em Israel foi denominada “Tempestade Al-Aqsa”. Podemos não concordar com as religiões, mas devemos respeitá-las. A incursão de Ben-Gvir foi um ato de violência simbólica e sinalizou que Israel se apossaria de toda Jerusalém.

Os palestinos de Gaza têm sido martirizados com deslocamentos, destruição de seus lares e de suas cidades, com bombas e mortes, principalmente de mulheres e crianças. O terrorismo do Hamas não autoriza o terrorismo de Estado de Israel contra a população civil indefesa. Se Israel e o Ocidente querem acabar com o terrorismo, precisam fazer apenas uma coisa: garantir um Estado, terra, liberdade e paz para os palestinos. •


*Professor da Escola de Sociologia e Política e autor de Liderança e Poder.

Publicado na edição n° 1282 de CartaCapital, em 25 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Êxodo e martírio’

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