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Eugenia húngara

Viktor Orbán critica a “mistura de raças” e os países europeus que admitem a presença de “mestiços”

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Desta vez, o repúdio global a Orbán foi mais assertivo - Imagem: Gabriel Bouys/AFP
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Uma antiga assessora do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que renunciou no fim de julho, alertou-o de que sua retórica de extrema-direita pode ter consequências trágicas. O líder húngaro provocou uma reação no país e no exterior com um discurso recente, no qual se manifestou contra a “mistura de raças”. Logo depois, a socióloga Zsuzsa Hegedüs, que conhece Orbán­ há 20 anos, apresentou sua renúncia e criticou o primeiro-ministro pelo que chamou de discurso “puramente nazista”. “Sou judia. E o trabalho da nossa geração é impedir qualquer coisa parecida, porque vimos o que aconteceu. Não apenas com os judeus. Em Ruanda também. O ódio étnico leva ao genocídio”, disse Hegedüs em entrevista a The Observer.

O discurso de Orbán aconteceu em um encontro anual na Romênia, que o líder húngaro costuma usar para fazer anúncios importantes. Durante o pronunciamento, disse que a mistura entre europeus é aceitável, mas os europeus a se misturar com não europeus criaram “mestiços”. “Estamos dispostos a nos misturar, mas não queremos nos tornar mestiços”, afirmou. Ele acrescentou que os países da Europa Ocidental onde isso foi considerado aceitável “não são mais nações”.

Orbán, que em abril conquistou o quarto mandato consecutivo de primeiro-ministro, usa frequentemente a retórica da extrema-direita, especialmente desde 2015, quando emergiu como o mais feroz oponente na Europa ao acolhimento de refugiados e migrantes. Seus repetidos ataques ao empresário e filantropo judeu nascido na Hungria George Soros também foram amplamente criticados como antissemitas. Orbán vive de controvérsias. Sua postura anti-imigração e suas políticas retrógradas sobre os direitos LGBT+ o tornaram um favorito da direita internacional. Nos próximos dias, ele deve viajar para Dallas, no Texas, e fazer o discurso de abertura na Conferência de Ação Política Conservadora, influente assembleia da direita norte-americana.

Em maio, Orbán falou numa sessão especial da CPAC na Hungria, quando seu discurso mencionou a “grande substituição”, teoria da conspiração popular na extrema-direita, segundo a qual há um movimento liberal para mudar a composição étnica dos Estados Unidos e dos países europeus por meio da imigração.

Embora as declarações de Orbán tenham frequentemente provocado críticas de liberais, a reação às suas palavras sobre a mistura de raças foi mais forte que de hábito. A Academia Húngara de Ciências condenou os comentários, chamando-os de “cientificamente insustentáveis” e “uma ideologia perigosa”, enquanto o rabino-chefe da Hungria, Róbert Frölich, também criticou o discurso. Vários políticos internacionais se declararam enojados com o posicionamento de Orbán. “O racismo é uma invenção política venenosa. Não deveria haver lugar para ele na Europa, onde nossa força vem da diversidade”, disse o vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans.

O discurso de ódio, mais um entre tantos, faz do primeiro-ministro um ícone da extrema-direita mundial

A enviada dos Estados Unidos para combate ao antissemitismo, Deborah Lipstadt, criticou o “uso de uma retórica que claramente evoca a ideologia racial nazista”. Dani Dayan, presidente do Yad Vashem, o centro memorial do holocausto em Jerusalém, também traçou paralelos com o passado nazista. “A declaração feita pelo primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, lembra muito as ideologias associadas às horríveis atrocidades do Holocausto. O holocausto nos ensina que devemos confrontar tais expressões rápida e diretamente.”

Em um sinal de que a reação pode ter surpreendido Orbán, ele deu o passo incomum de retroceder um pouco, ao insistir que não falava sobre a mistura de raças, mas de culturas. “Não quero que a Hungria se torne um país de imigrantes. Não é uma questão de raça para nós. É uma questão de diferenças culturais”, afirmou durante uma visita a Viena na quinta-feira 28. “Às vezes, posso ser ambíguo. Falamos de uma posição civilizacional. Estamos orgulhosos daquilo que a Hungria conseguiu na luta contra o racismo.”

Enquanto Orbán se dirige à CPAC, é improvável que muitos da direita norte-americana tenham ficado incomodados por seu discurso. “A extrema-direita representa uma parte cada vez mais presente da comunidade republicana nos Estados Unidos. O partido mudou radicalmente. Ideias como a teoria da grande substituição tornaram-se a corrente dominante”, avalia Rick Wilson, ex-estrategista republicano e cofundador do Lincoln Project, comitê de ação política contra Donald Trump.

Orbán tinha relações calorosas com Trump, e elogios à “democracia iliberal” da Hungria apareceram com frequência no programa Tonight, de Tucker Carlson, na Fox News. Carlson passou uma ­semana na Hungria, no ano passado, e pintou o país como um paraíso conservador. “Orbán é visto como anti-Europa, anti-imigração, antielite e anti-woke, o que atrai republicanos e conservadores”, disse Tim Miller, ex-diretor político do Republican Voters Against Trump (Eleitores Republicanos Contra Trump).

Matt Schlapp, presidente do CPAC, foi questionado se Orbán ainda era convidado para abrir o encontro. “Vamos ouvir o homem falar. Vamos ver o que ele diz. E se as pessoas discordarem de algo que ele diz, devem falar”, redarguiu.

Na Hungria, os apoiadores de Orbán na mídia pró-governo têm trabalhado arduamente para pintar as críticas ao discurso como partidárias e irrelevantes. Um artigo recente no jornal Magyar Nemzet acusou Hegedüs de “mentira deliberada, desonestidade e traição”. Outros meios de comunicação usaram linguagem ofensiva contra ela ou minimizaram sua importância.

Hegedüs disse ignorar as críticas e alegou ter recebido muitas mensagens privadas de apoio de filiados do partido ­Fidesz, de Orbán, que estão desconfortáveis com o discurso. “Isso é reconfortante.” A ex-assessora disse que “aceitou” o esclarecimento de Orbán de que se referia à mistura de culturas, não de raças, e acredita que o assunto está encerrado. Ela não pretende, no entanto, retirar sua renúncia e disse que com uma possível desaceleração econômica à vista a retórica incendiária foi particularmente irresponsável. “Em tempos em que os cidadãos estão desesperados… é muito mais fácil mobilizar os ódios.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Eugenia húngara “

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