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EUA: longe do sonho de Martin Luther King

Baixa renda média, vulnerabilidade econômica, encarceramento desproporcional, restrição de direitos civis são ainda uma realidade no país de Barack Obama

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De Washington D.C

Quando tomar o microfone, às três horas e cinco da tarde, ladeado pelos ex-presidentes Jimmy Carter e Bill Clinton, no momento mais aguardado da celebração dos 50 anos do histórico discurso do reverendo Martin Luther King Jr, pronunciado no mesmo Lincoln Memorial, em 28 de agosto de 1963, o primeiro presidente negro dos EUA não poderá deixar de lado um tema pouco abordado em seus cinco anos e meio de governo: as relações étnicas na velha democracia do norte, ainda hoje marcadas pela indelével mancha da escravidão, instituição findada oficialmente há 150 anos justamente por Abraham Lincoln.

Meio século após a impressionante demonstração de força do movimento pelos direitos civis dos negros americanos – a Marcha a Washington por Empregos e Liberdade, que reuniu 250 mil pessoas no centro cívico da capital federal na maior manifestação popular da história americana – ainda há muito o que celebrar. O fim da segregação legal, através da Lei dos Direitos Civis, de 1964, assinada pelo presidente Lyndon Johnson dez meses depois da Marcha, usou a autoridade do Estado para proibir a separação de negros e brancos em estabelecimentos comerciais cuja regulamentação dependesse de licença federal.

Escolas e universidades não poderiam mais recusar matrículas com base na cor de seus alunos, e empresas com mais de 25 empregados comprovadamente usando critérios étnicos para remuneração e contratação de funcionários seriam sumariamente fechadas pelo governo. Se comparados com os dados de 1963, os avanços social e econômico dos negros dos EUA são inquestionáveis.

Por outro lado, o Estado e a sociedade civil se defrontam com uma quantidade formidável de desafios – incrementados este ano pela decisão da Suprema Corte de derrubar aspecto fundamental da Lei do Direito ao Voto, assinada pelo mesmo Johnson em 1965, uma das maiores conquistas do movimento negro; pela absolvição do assassino confesso do adolescente Trayvon Martin na Flórida, cuja legislação protege vigilantes armados que se sintam ameaçados por outros indivíduos; e pelo absurdo do chamado ‘stop and frisk’, a pratica de revista policial adotada em Nova York considerada preconceituosa e racista pela Justiça Federal –  para tornar realidade o sonho acalentado pelo pastor protestante, aclamado pela revista “Time”, na capa de sua edição mais recente, como um “dos pais fundadores da pátria”.

“As questões raciais são o portal de entrada do progresso na história dos EUA. Quando a América lida com seus problemas de discriminação racial, novos direitos e liberdades são discutidos para além de seus aparentes limites. O movimento de direitos das mulheres, o dos homossexuais, o ambientalista, até mesmo o da reforma política da imigração, todos se beneficiaram diretamente dos resultados da Marcha. A sociedade só não avançou mais porque nos últimos 40 anos nosso discurso político foi dominado por uma única ideia, a de que políticas públicas federais são, invariavelmente, negativas. Os avanços que beneficiaram a classe média negra, que permitiram a própria existência de um governo Obama, são menos celebrados do que deveriam por conta da atrofia do discurso político americano. Obama raramente toca no tema. Aceita-se um presidente negro desde que ele não fale muito sobre o que significa ser negro na América, ontem e hoje. Minha esperança é que hoje ele pudesse falar também de como ser um homem negro informa sua visão sobre os grandes temas de nosso tempo”, diz o historiador e jornalista Taylor Branch, mais celebrado biógrafo de Martin Luther King Jr., cuja trilogia “America in the King Years” lhe rendeu o prêmio Pulitzer.

Em texto emocionado, publicado na “Newsweek”, Joshua DuBois, um dos mentores espirituais de Barack Obama, diretor para assuntos religiosos da campanha de 2008 e responsável, até este ano, em estabelecer uma ponte direta entre a Casa Branca e as principais lideranças religiosas do país, lembra, curiosamente, que durante os preparativos para a solenidade desta tarde, mais do que o famoso discurso de Luther King, o sermão batizado popularmente como “Eu Tenho Um Sonho”, as palavras que mais lhe vinham à cabeça foram as proferidas pelo profeta da luta contra a discriminação racial nos EUA um dia antes de seu assassinato: “Talvez eu não esteja lá com vocês, mas tenham certeza, todos nós ainda entraremos na Terra Prometida”.

O paralelo com Moisés e Josué é óbvio, mas os EUA da Era Obama não é nem de longe a imagem paradisíaca da promessa feita no Antigo Testamento ao povo judaico e bisada pelo pastor da Geórgia na terra do sonho americano em 1968. Tampouco a utopia da sociedade pós-racial, um dos mitos ideológicos mais difundidos durante a campanha presidencial de 2008, se tornou realidade. Os números, fornecidos pelo próprio governo, a bem da verdade, são terríveis: a renda média dos afro-americanos não só é muito inferior ao dos caucasianos como a disparidade aumentou, em ritmo acelerado, de 9 mil dólares/ano, na última década. O débâcle do sistema imobiliário a partir de 2008 afetou especialmente a comunidade negra, já que a parte mais significativa das hipotecas de alto risco eram estabelecidas com mutuários de renda mais baixa. Um ano depois do estouro da crise financeira global, enquanto o governo Obama promovia o resgate dos grandes bancos, 1/3 das famílias negras americanas tiveram ou estagnação ou redução de renda.  Entre os brancos este número não chegou a 15%.

Para militantes do arremedo de movimento negro existente hoje nos EUA, nenhum aspecto é mais ilustrativo dos desafios a serem enfrentados em busca da igualdade social – muito lembrada pela luta contra a discriminação racial, a Marcha de 1963 pedia com igual ênfase melhores condições de educação e trabalho e foi comandada por sindicalistas e veteranos da luta operária na época da Grande Depressão – do que o escândalo do sistema prisional americano. Embora representem apenas 12,6% da população, negros são 40% dos americanos vivendo por trás das grades no país de Martin Luther King Jr. O Departamento de Justiça informa, em dois estudos realizados no mesmo espaço de tempo, que há quatro vezes mais chances de um negro ser preso por crime relacionado ao uso de substâncias ilícitas enquanto o consumo de drogas é rigorosamente igual entre negros, brancos, hispânicos e asiáticos nos EUA. Em um distrito analisado, o de Alameda, na Califórnia, 93% das prisões relacionadas a drogas eram de homens negros. No entanto, toda a população negra local, incluindo mulheres e crianças, não chega a representar 40% do total. “Esta é a base do stop-and-frisk. Se você parar mais negros, vai prender mais negros”, denuncia o jornalista Gary Rivlin, da revista “The Nation”.

O impacto de políticas públicas denunciadas como racialmente discriminatórias por grupos progressistas nas famílias dos negros americanos é enorme. Em livro que se tornou um best-seller há dois anos, “The New Jim Crow: Mass Incarceration in the Age of Colorblindness” (“As Novas Leis de Discriminação Racial: Detenção em Massa na Era da Invisibilidade da Cor”, em tradução livre), a professora de Direito da Universidade de Ohio Michelle Alexander mostrou que em 2008 haviam mais negros presos nos EUA do que escravos em 1850. De acordo com o próprio governo, 80% dos réus em processos em curso no sistema penal americano simplesmente não têm como pagar por um advogado de defesa. No ano passado o Departamento de Justiça anunciou a intenção de se fazer uma reforma gigantesca na Defensoria Pública, mas as medidas ainda nano saíram do papel.

“Obama não tem feito muito em relação ao tema. Até hoje, esta administração somente ofereceu clemência a um indivíduo, menos do que os governos Clinton e Bush II. Ações são mais importantes do que palavras. Precisamos reconciliar-nos, enquanto sociedade, com a noção de raça e seu devido lugar no sistema prisional, desde a detenção do cidadão, a decisão de que o negro será alvo preferencial da indústria das cadeias privadas, a formação dos júris, a aplicação das sentenças”, disse a professora de filosofia do Instituto de  Ética e Justiça Criminal da Universidade John Jay, referência em estudos de violência urbana nos EUA, Myisha Cherry, em evento concorrido em Nova York deslanchado por conta do anúncio, na mesma semana, da decretação de inconstitucionalidade do sistema de revistas policiais implantado em Nova York pelo prefeito Michael Bloomberg, considerado em júri federal como uso da força pública para fins de discriminação racial, e do anúncio pelo Departamento de Justiça de redução das penas para delitos considerados menos graves no uso e tráfico de drogas.

No mesmo evento, outro negro, o advogado Vincent Southerland, uma das estrelas da poderosa Associação Nacional para o Desenvolvimento das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), foi direto ao ponto: “Ainda precisamos enfrentar de frente o pecado original dos EUA. Quando você atravessa os portões da enorme penitenciária de Angola, na Louisiana, você vê homens negros em uniforme e policiais brancos em seus cavalos, rifles em mão. Os brancos vigiam enquanto os negros trabalham, em uma prisão cercada por velhas ‘plantations’, cuja mão-de-obra era o trabalho escravo. O nome da prisão é o do país de onde a maior parte dos escravos locais vieram. A história, em Angola, é palpável”. Também o era na tarde de 28 de agosto de 1963. E quiçá será novamente em algumas horas, quando o negro Barack Houssein Obama tratará das relações étnicas nos EUA na posição de líder da nação mais poderosa do planeta.

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