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EUA e Irã, contra os conservadores

Washington e Teerã retomam o diálogo nuclear tentando evitar a oposição dos setores linha-dura dentro de cada país

Hassan Rouhani na cidade portuária de Bushehr, que abriga um reator nuclear, na terça-feira 13. O presidente iraniano afirmou que a República Islâmica "tomou os primeiros passos para se livrar das sanções"
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O secretário de Estado dos Estados Unidos, John Kerry, e o ministro do Exterior do Irã, Mohammad Javad Zarif, se reuniram por quase sete horas na quarta-feira 14 em Genebra para reiniciar as negociações a respeito do programa nuclear iraniano. Juntos na cidade suíça, Kerry e Zarif tiveram um obstáculo em comum a superar – a postura linha-dura dos conservadores norte-americanos e iranianos contrários ao acordo e dispostos a torpedear as negociações.

A reunião desta quarta foi consequência da extensão das negociações anunciada em novembro de 2014. Kerry e Zarif deveriram determinar as diretrizes segundo as quais seus subordinados vão dialogar nos próximos dias, também em Genebra. Além das duas partes, estarão presentes emissários dos outros quatro membros do Conselho de Segurança da ONU (China, França, Reino Unido e Rússia) e da Alemanha. O objetivo do Irã e do chamado P5+1 é firmar um acordo político até 1º de março e um acordo final até 30 de junho.

O diálogo foi interrompido no fim do ano passado pela impossibilidade de as partes chegarem a um acerto. O impasse foi atribuído à falta de flexibilidade do Irã, que teria se recusado a abrir mão de parte significativa de suas centrífugas de processamento de urânio e exigido o fim imediato das sanções internacionais em caso de acordo.

A dificuldade de concessões por parte de Teerã deriva do fato de seu programa nuclear ser visto por muitos como um orgulho nacional. Essa percepção é especialmente alta entre os setores mais conservadores da política iraniana, nomeadamente a Guarda Revolucionária, força armada paralela ao Exército regular, que responde diretamente ao líder supremo, o aiatolá Ali Khamenei, e que detém um império econômico. Hassam Rouhani, o presidente do Irã, lançou a atual política de “engajamento prudente” com os EUA e está inclinado a enfrentar a linha-dura.

A disposição de Rouhani ficou clara no último dia 4, em discurso a 1,5 mil empresários em Teerã. Sua franqueza foi impressionante. Sem citar a Guarda Revolucionária, Rouhani fez diversas críticas à presença do grupo na economia nacional, pedindo a quebra de monopólios, o pagamento de impostos por todos e mais transparência às instituições do país. Rouhani deixou clara sua preocupação com a queda do preço do petróleo e os impactos dela para as receitas iranianas. “Não podemos ter crescimento sustentável enquanto estamos isolados”, afirmou, para em seguida questionar a política externa do Irã, imensamente influenciada pela Guarda Revolucionária. “A economia tem pagado pela política. Seria bom ao menos uma vez fazer o contrário e [fazer] a política externa e interna pagar pela economia”, afirmou.

No mesmo discurso, Rouhani deixou patente seu desejo de fazer concessões no programa nuclear para ver as sanções reduzidas. “Nossos ideias não estão ligados a centrífugas, mas a nosso coração e determinação”, afirmou. “Se nós tivermos mais transparência e, por exemplo, pausarmos parte da operação de enriquecimento [de urânio] que não precisamos, isso significa que abandonamos nossos ideais?”, questionou. Sua cartada mais arriscada veio em seguida. Rouhani não citou a negociação nuclear diretamente, mas ventilou a possibilidade de “assuntos cruciais” serem levados a referendo popular em vez de passarem pelo Parlamento. É improvável que tal procedimento seja realizado, mas, ao cogitá-lo, Rouhani deixou nas entrelinhas a crescente diferença de opinião entre a população iraniana e o establishment político-religioso radical que controla a política do país.

A resposta veio de pronto. Mohammad Reza Naqdi, chefe da milícia paramilitar Basij, ligada à Guarda Revolucionária, afirmou que os ideais do Irã não eram “as centrífugas”, mas “destruir a casa dos opressores, a Casa Branca e o sionismo”. Khamenei, por sua vez, afirmou que o Irã deveria buscar “se imunizar” contra as sanções internacionais e classificou de “descarada” a retórica norte-americana a respeito da retirada das sanções em caso de acordo – a proposta do P5+1 é fazer isso de forma escalonada, não de uma vez, como deseja o Irã. Não se sabe qual é a real posição de Khamenei. O líder supremo representa a entidade mais poderosa do país, mas precisa mediar a disputa entre Rouhani e a Guarda Revolucionária, sem demonstrar fraqueza diante do “império”.

No lado norte-americano, as tentativas de torpedear as negociações também são significativas. A administração Barack Obama deixou claro diversas vezes que é contra o estabelecimento de novas sanções contra o Irã enquanto o diálogo está em curso. Isso não deve impedir o Congresso, que também tem a prerrogativa de aplicar sanções econômicas, de analisar um projeto de lei com novas punições ao Irã. A Casa Branca sofre este tipo de ameaça desde janeiro de 2014, quando iniciou o diálogo com o Irã, mas desta vez o problema é mais profundo. Após as eleições legislativas de novembro passado, o Senado dos EUA está dominado pelo Partido Republicano, que almeja aprovar novas sanções ao Irã com maioria de dois terços, o que impediria um veto de Obama.

“A administração acredita que, neste momento, aumentar as sanções prejudicaria drasticamente nossos esforços para alcançar este objetivo comum”, afirmou a embaixadora dos EUA na ONU, Samantha Power, na segunda-feira 12. Segundo Power, as sanções só devem ser retomadas se não houver acordo. “As sanções de fato ajudaram a levar o Irã para a mesa de negociações, mas elas não pararam o avanço do programa nuclear. As negociações fizeram isso”, afirmou Power. Mesmo diante da postura da Casa Branca, há uma chance de o projeto ser colocado em pauta e votado. Além dos senadores do próprio partido, os republicanos precisarão coletar votos de democratas, correligionários de Obama. A disputa deve ensejar uma intensa batalha política no Senado, envolvendo o lobby ligado a Israel, este também dividido, entre o Aipac, alinhado à direita israelense e defensor de mais sanções, e o J-Street, favorável a negociações.

O que os setores linha-dura de Estados Unidos e Irã não percebem, ou percebem e, por isso mesmo, agem assim, é o fato de o período de seis meses até o fim de junho ser uma janela de oportunidade que provavelmente não surgirá novamente em anos. Obama e Rouhani lideram governos dispostos a dialogar, e por isso tiveram resultado as negociações secretas entre Washington e Teerã que levaram às conversas atuais. Se um acordo não for realizado até a metade de 2015, a boa vontade se esgotará e o mundo voltará ao dilema anterior, com o Irã reativando seu programa nuclear e os EUA, as sanções. Seria o pior dos mundos. O programa nuclear do Irã é só o reflexo mais intenso do ganho de poder regional por parte do país dos aiatolás na última década. Esse crescimento precisará ser acomodado de uma forma ou de outra. Se não for pela diplomacia, pode ocorrer por vias militares. E poucos terão a ganhar.

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