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Escalada silenciosa das tensões nucleares preocupa especialistas

Reunidos em Washington, ativistas e ex-militares alertaram para o risco de a política americana de ataques ‘preventivos’ desencadear uma catástrofe global

Escalada silenciosa das tensões nucleares preocupa especialistas
Escalada silenciosa das tensões nucleares preocupa especialistas
Putin e Biden: a brincadeira é ver quem pisca primeiro - Imagem: Sergei Bobylyov/Sputnik/AFP
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O mundo tem acompanhado displicentemente movimentos e decisões que vêm remodelando a linha que separa a humanidade do que pode ser o princípio de uma guerra nuclear mundial. O medo, que assombra até o observador mais desatento, vem sendo diluído em meio a uma enxurrada de informações que nos são empurradas goela abaixo. O “mundo líquido”, como sugeriu o filósofo Zygmunt Bauman, também tem diluído o tempo para raciocinar, refletir e ponderar.

O resultado, por exemplo, é a quase total indiferença diante do envio, na quinta-feira, 13, de um submarino nuclear de ataque rápido pelos Estados Unidos à Baía de Guantánamo. Uma resposta que foi dada em menos de 24 horas depois da chegada de navios de guerra russos à Cuba para exercícios militares. A notícia foi recebida sem grande alarde. Assim como também tem se tornado trivial a ineficácia e, por vezes, a irrelevância do Conselho da ONU na resolução de conflitos que incitam o uso de armas nucleares, como a guerra entre Rússia e Ucrânia, têm se tornado triviais. A guerra, que já dura mais de dois anos, matou mais de 50 mil pessoas, segundo levantamento da BBC em abril passado.

Na semana passada, especialistas ciosos do tema se reuniram em uma conferência realizada pelo Instituto Schiller, em Washington, para discutir o risco iminente de conflitos nucleares. 

Os establishments ocidentais se convenceram de que tudo o que a Rússia faz é apenas um blefe

O ex-oficial de inteligência da Marinha dos Estados Unidos, Scott Ritter, falou sobre a mudança de postura do país em relação ao uso de armas nucleares ao longo dos anos. Ele foi categórico ao afirmar que o que tem impedido uma Terceira Guerra Mundial até agora é a constância do diálogo entre os países, especialmente entre as diplomacias da Rússia e dos Estados Unidos.

Em um tempo em que a diplomacia existia, estávamos ativamente envolvidos para evitar a guerra que todos temiam. A razão pela qual não houve guerra é porque houve diplomacia, porque os líderes conversavam entre si, direta ou indiretamente.”

Os tempos, porém, são outros, e a ponderação política tem se tornado cada vez mais rara, especialmente desde que os Estados Unidos começaram a mudar algumas regras do jogo. Houve uma época em que as armas nucleares existiam com o propósito de dissuadir ataques nucleares. Esse conceito de dissuasão, conhecido como destruição mutuamente assegurada, funcionava de maneira objetiva: os Estados Unidos tinham armas nucleares, a União Soviética também, e ambos precisavam garantir que ninguém se sentiria confiante o suficiente para usar essas armas preventivamente para obter alguma vantagem estratégica.

“Isso funcionou até o fim da União Soviética. Foi então que os Estados Unidos decidiram que precisavam manter uma vantagem nuclear sobre os soviéticos. Corrompemos o conceito de controle de armas”, afirmou Ritter. Segundo ele, após os ataques de 11 de setembro, o país dobrou a aposta e decidiu mudar a doutrina de dissuasão nuclear para a doutrina de combate à guerra nuclear.

“Passamos a dizer que podemos usar armas nucleares preventivamente até contra uma ameaça não nuclear. Em 2020, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez campanha com a promessa de devolver aos Estados Unidos a doutrina da sanidade do uso exclusivo, retornando ao único propósito do arsenal nuclear: dissuadir outros de nos atacarem. Ele não fez isso.”

Na mesma linha, o republicano Richard Black, ex-senador e ex-chefe da Divisão de Direito Penal do Exército nno Pentágono ressaltou que o fundamento nuclear dos Estados Unidos concede ao presidente autoridade irrestrita para lançar um ataque nuclear por qualquer motivo ou sem motivo algum. “Enquanto o princípio russo e chinês baseia-se no uso defensivo de armas nucleares, aqui o preceito é ofensivo. Não é uma doutrina defensiva”.

O ex-senador republicano também defendeu que a Guerra da Ucrânia tem sido travada principalmente em torno da ideia de que a Ucrânia seja integrada à OTAN, o que permitiria o estacionamento de mísseis nucleares na fronteira russa. “A Rússia estaria numa posição em que poderia ser atacada repentina e inesperadamente, sem ter absolutamente nenhum tempo para responder. Essa é realmente a essência do que estamos enfrentando com esta enorme e mortal guerra na Ucrânia. A maior guerra na Europa desde a Segunda Guerra Mundial está sendo travada à porta de uma gigantesca superpotência nuclear.”

O coronel aposentado do Exército norte-americano, Lawrence Wilkerson, que serviu como Chefe do Estado-Maior do Secretário de Estado Colin Powell de 2002 a 2005, também falou na conferência e afirmou que uma iminente guerra nuclear deve ser atribuída aos Estados Unidos. “A culpa é nossa. Revogamos todos os regimes de tratados pertinentes às armas nucleares. Revogamos todos os tratados de proteção meticulosamente ao longo dos muitos anos da Guerra Fria, até que as armas nucleares pudessem operar livremente. Conseguimos. Agora, nove países têm armas nucleares e eu incluo, claro, Israel, um dos estados com armas nucleares mais perigosos. Na minha opinião, ainda temos dois ou três aspirantes e, portanto, poderíamos ter dois novos Estados com armas nucleares em breve.”

A ativista alemã Helga Zepp-LaRouche, fundadora do Instituto Schiller, também falou durante o seminário e alertou que o verdadeiro problema é que os establishments ocidentais se convenceram de que tudo o que a Rússia faz é apenas um blefe. “É por isso que a população não está sendo informada sobre o que está acontecendo por parte da Otan. Nós cruzamos as linhas vermelhas o tempo todo e estamos de fato à beira de uma catástrofe potencial. Se algum dia chegarmos a uma guerra nuclear, não restaria absolutamente ninguém para desfrutar da vitória, de modo que não sobraria nem mesmo um historiador para investigar os motivos de isso ter acontecido.”

Para LaRouche, é necessária a criação de uma nova e imediata arquitetura de segurança e desenvolvimento que leve em conta os interesses de cada país. Segundo ela, países como o Brasil e a China têm tentado costurar acordos importantes, mas que ainda não surtiram efeito concreto. “De todo modo, acho que chegamos a um ponto em que todos os povos do mundo são chamados a expressar suas vozes. Devemos ter confiança de que podemos encontrar soluções para um problema tão absolutamente existencial, porque é uma ameaça mortal e muito real à nossa existência.”

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