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Epopeia científica
A AstraZeneca retira sua vacina contra a Covid do mercado, mas o sucesso do projeto não deve ser esquecido


O recente anúncio de que AstraZeneca deixaria de comercializar sua vacina contra a Covid encerra uma das histórias médicas mais notáveis do século. Criada um ano após o início da pandemia, a vacina AZ era barata, fácil de armazenar e transportar e ajudou a evitar crises humanitárias na Ásia e na América Latina, onde muitos países não podiam pagar pelas caras vacinas de RNA mensageiro que estavam sendo adquiridas pelos países ricos. Estima-se que salvou 6,3 milhões de vidas somente em 2021.
Desde o início, o imunizante desenvolvido por equipes de pesquisa lideradas pelos professores Andy Pollard e Sarah Gilbert, do Oxford Vaccine Centre, foi alvo de controvérsia. A vacina foi relacionada à formação de coágulos sanguíneos, observadores dos EUA criticaram os protocolos de seus ensaios e o presidente francês, Emmanuel Macron, afirmou que era “quase ineficaz” para pessoas com mais de 65 anos.
Em casos muito raros, a vacina AZ pode realmente causar coágulos sanguíneos. De acordo com um estudo publicado no British Medical Journal, para cada 10 milhões de imunizados com AstraZeneca, haveria 73 casos adicionais de coágulos. Por outro lado, 10 milhões de casos de Covid desencadeariam milhares de casos extras desses mesmos coágulos.
Muitas das discussões ligadas à vacina resultaram de interesses próprios nacionais. Outras derivam da natureza das próprias vacinas, e isso levanta questões que provavelmente ressurgirão com a chegada de qualquer nova pandemia nos próximos anos, alertaram os cientistas.
Uma vacina é diferente de outros tipos de medicamentos porque funciona estimulando as defesas das pessoas contra as doenças, armando-as antes de uma infecção futura. Essa preparação vai muito além de ajudar o indivíduo imunizado, protege a população em geral, salienta o professor Stephen Evans, da Escola de Medicina e Higiene Tropical de Londres.
“Há pessoas que não conseguem responder a uma vacina porque estão doentes ou têm um sistema imunitário enfraquecido. Elas continuam vulneráveis. Mas, se for possível aumentar a imunidade coletiva, garantindo que o número máximo de pessoas seja inoculado, os níveis do vírus cairão e os vulneráveis serão protegidos”, observa Evans. Se acreditamos ter a responsabilidade de ajudar os outros, ser vacinados permite isso. Em outras palavras, há questões morais sobre ser vacinado.”
De baixo custo e fácil de transportar, o imunizante salvou milhões de vidas e evitou catástrofes humanitárias na Ásia e na América Latina
Convencer o público sobre isso pode não ser fácil, sobretudo após o aumento na propaganda antivacina nos últimos anos. Além do mais, existe uma segunda diferença crucial entre os tratamentos médicos-padrão e as vacinas, acrescentou o professor David Spiegelhalter, da Universidade de Cambridge. “Nunca sabemos as identidades dos que se beneficiam (de uma vacina), são pessoas ‘estatísticas’, enquanto aqueles que são prejudicados podem ser identificados e ter as suas histórias contadas.”
A vacina contra Covid da AstraZeneca é um exemplo disso. Conhecemos apenas aqueles que foram prejudicados, mas não podemos identificar os que se beneficiaram. Mais uma vez, isso torna mais complicado identificar o sucesso de um imunizante e garantir às pessoas sua eficácia. “Até certo ponto, é possível contornar essa situação e avaliar o impacto das vacinas contra a Covid observando as mortes dos trabalhadores na linha da frente do serviço de saúde nos primeiros dias da pandemia”, diz Evans. “Centenas morreram, mas agora está claro que, se tivéssemos uma vacina, a maioria provavelmente teria sobrevivido.”
Quando se olha para a vacina AstraZeneca de uma perspectiva global, ela provavelmente beneficiou dezenas de milhões de pessoas, prevenindo mortes e reduzindo as sequelas em longo prazo da Covid, concorda a maior parte dos virologistas e especialistas. Foi um sucesso notável, mas seu fim foi marcado por muitos que salientaram seus efeitos secundários, sem citar suas realizações.
“O paradoxo das vacinas é que as pessoas esquecem o quão importantes elas são”, disse o professor Adam Finn, da Universidade de Bristol. “Elas são como a democracia. Você aproveita por um tempo e depois esquece como é importante preservá-la. É um problema.”
Por outro lado, também está claro que os políticos e as autoridades devem ter cuidado com suas declarações, acrescentou Fiona Fox, chefe do Science Media Centre. “A confiança do público nas vacinas virá de uma comunicação franca e honesta. Os benefícios superam enormemente os riscos, como aconteceu com esta vacina. Mas você não ganhará nenhuma discussão afirmando que as vacinas são 100% seguras ou correndo para longe aos primeiros relatos de problemas, o que, infelizmente, muitas autoridades tendem a fazer”, avalia. “Minimizar os riscos é sempre tentador quando se precisa que as pessoas tomem uma vacina segura, mas ao cabo pode ser contraproducente, porque corrói a confiança em longo prazo.” •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Epopeia científica’
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