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Entre a taça e os lábios

O funcionamento real das finanças, na euforia e no desastre recentes, contraria a tese dos mercados eficientes

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Enquanto a Inglaterra escorrega na pirambeira da recessão, o primeiro-ministro David Cameron amarga as consequências de suas cumplicidades com os sequazes de Ruppert Murdoch. No continente, sucessivas quedas nos índices trimestrais de produção e o continuado aumento do desemprego atormentam a Espanha, a Itália e outros infelizes da dita periferia. O espanhol Mariano Rajoy lidera o campeonato europeu de impopularidade.

Os laboriosos alemães da senhora Angela Merkel sofrem as consequências das políticas de austeridade que empurraram goela abaixo de seus parceiros. Até mesmo meu (hoje feliz) periquito de estimação sabe que a recessão nos arredores iria, mais cedo ou mais tarde, emperrar as exportações líquidas, o motor que sustentou o bom desempenho da economia alemã nos últimos anos. Como mostrou Michel Aglietta, nesse ambiente baixista os mercados de seguro de crédito se “autonomizam”: os preços dos Credit Default Swaps (CDS) deixam simplesmente de aferir o risco de crédito – a probabilidade de inadimplemento – e se “descolam” das dívidas que os originaram. Tornam-se virulentamente especulativos e invertem as relações de determinação: em vez de refletir o risco de crédito, passam a causar a elevação do risco.

Os detentores de CDS apostam na derrocada das dívidas. Nessa cavalgada dos valquírios, os riscos de default soberano e de falências bancárias na periferia (ou, o que dá na mesma, de saída do euro) aumentam significativamente. Assustados, os investidores cobram juros cada vez mais elevados para rolar os compromissos vincendos ou para absorver dívida nova de bancos e governos. A confiança entra em colapso e o espectro da recessão prolongada assola a Europa. O crédito seca. Cúmplices do desastre do subprime, as agências de classificação de risco distribuem notas de reprovação aos bancos europeus e às dívidas soberanas.

Rajoy e o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, protestam contra as “falhas de mercado”. Falhas de mercado, na linguagem técnica, resultam de “déficits” no abastecimento de informações aos agentes envolvidos numa transação. No caso dos mercados financeiros, tais falhas são produzidas por assimetria de informação, geradora de seleção adversa e moral hazard.

A assimetria de informação é inerente à relação credor-devedor: o bem transacionado não é um valor real disponível, mas uma promessa, o que dificulta aos contratantes avaliar adequadamente as condições e as intenções do outro protagonista. Haverá seleção adversa quando o credor, incapaz de avaliar corretamente o risco de concessão dos empréstimos, discrimina os bons devedores potenciais, elevando o custo do crédito. O risco moral é fruto da incapacidade do prestamista de supervisionar corretamente o uso do crédito por parte do devedor, que pode estar empenhado em aplicar o dinheiro em operações de maior risco.

É um conceito curioso. Na concepção desses economistas, as “falhas” ocorrem porque, na dura realidade da vida, os mercados não oferecem aos agentes as informações que permitam a realização de transações mutuamente satisfatórias em todas as datas e contingências futuras, isto é, não conseguem realizar as proezas que estão supostas nos modelos de equilíbrio geral. O funcionamento real dos mercados financeiros, na euforia e no desastre dos últimos anos, insistiu em contrariar as hipóteses bem-comportadas sobre os mercados eficientes.

Fecundada nas entranhas da desregulamentação e legitimada pelas patranhas acadêmicas dos mercados eficientes, a organização da finança contemporânea gerou uma bateria de incentivos perversos. No rol de suas façanhas estão a alavancagem abusiva, a obsessão pelo volume, a concorrência sem peias por rendimentos maiores e as remunerações generosas para os executivos e assemelhados.


Diante do colapso dos preços dos ativos, os bancos centrais foram compelidos a tomar medidas de provimento de liquidez e de capitalização dos bancos encalacrados em créditos irrecuperáveis. Para curar a ressaca da bebedeira imobiliária, os governos engoliram o estoque de dívida privada e expeliram uma montanha de títulos públicos que hoje infestam as carteiras dos bancos e dos investidores institucionais. A crise dos governos é a crise dos bancos. A crise dos bancos é a crise de crédito. A crise de crédito é a crise do gasto. E a crise do gasto é a crise da renda e do emprego.

Diz Martin Sandbu em seu artigo no Financial Times: sem a reestruturação dos estoques de dívida, de preferência organizada pelo Banco Central Europeu, não estarão disponíveis as condições para a reanimação dos gastos de investimento e consumo. Mas a coisa não é tão simples: a inevitável perda de riqueza envolvida em tais procedimentos é má conselheira da confiança privada. Entre a taça e os lábios, o líquido pode derramar.Enquanto a inglaterra escorrega na pirambeira da recessão, o primeiro-ministro David Cameron amarga as consequências de suas cumplicidades com os sequazes de Ruppert Murdoch. No continente, sucessivas quedas nos índices trimestrais de produção e o continuado aumento do desemprego atormentam a Espanha, a Itália e outros infelizes da dita periferia. O espanhol Mariano Rajoy lidera o campeonato europeu de impopularidade.

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Enquanto a Inglaterra escorrega na pirambeira da recessão, o primeiro-ministro David Cameron amarga as consequências de suas cumplicidades com os sequazes de Ruppert Murdoch. No continente, sucessivas quedas nos índices trimestrais de produção e o continuado aumento do desemprego atormentam a Espanha, a Itália e outros infelizes da dita periferia. O espanhol Mariano Rajoy lidera o campeonato europeu de impopularidade.

Os laboriosos alemães da senhora Angela Merkel sofrem as consequências das políticas de austeridade que empurraram goela abaixo de seus parceiros. Até mesmo meu (hoje feliz) periquito de estimação sabe que a recessão nos arredores iria, mais cedo ou mais tarde, emperrar as exportações líquidas, o motor que sustentou o bom desempenho da economia alemã nos últimos anos. Como mostrou Michel Aglietta, nesse ambiente baixista os mercados de seguro de crédito se “autonomizam”: os preços dos Credit Default Swaps (CDS) deixam simplesmente de aferir o risco de crédito – a probabilidade de inadimplemento – e se “descolam” das dívidas que os originaram. Tornam-se virulentamente especulativos e invertem as relações de determinação: em vez de refletir o risco de crédito, passam a causar a elevação do risco.

Os detentores de CDS apostam na derrocada das dívidas. Nessa cavalgada dos valquírios, os riscos de default soberano e de falências bancárias na periferia (ou, o que dá na mesma, de saída do euro) aumentam significativamente. Assustados, os investidores cobram juros cada vez mais elevados para rolar os compromissos vincendos ou para absorver dívida nova de bancos e governos. A confiança entra em colapso e o espectro da recessão prolongada assola a Europa. O crédito seca. Cúmplices do desastre do subprime, as agências de classificação de risco distribuem notas de reprovação aos bancos europeus e às dívidas soberanas.

Rajoy e o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble, protestam contra as “falhas de mercado”. Falhas de mercado, na linguagem técnica, resultam de “déficits” no abastecimento de informações aos agentes envolvidos numa transação. No caso dos mercados financeiros, tais falhas são produzidas por assimetria de informação, geradora de seleção adversa e moral hazard.

A assimetria de informação é inerente à relação credor-devedor: o bem transacionado não é um valor real disponível, mas uma promessa, o que dificulta aos contratantes avaliar adequadamente as condições e as intenções do outro protagonista. Haverá seleção adversa quando o credor, incapaz de avaliar corretamente o risco de concessão dos empréstimos, discrimina os bons devedores potenciais, elevando o custo do crédito. O risco moral é fruto da incapacidade do prestamista de supervisionar corretamente o uso do crédito por parte do devedor, que pode estar empenhado em aplicar o dinheiro em operações de maior risco.

É um conceito curioso. Na concepção desses economistas, as “falhas” ocorrem porque, na dura realidade da vida, os mercados não oferecem aos agentes as informações que permitam a realização de transações mutuamente satisfatórias em todas as datas e contingências futuras, isto é, não conseguem realizar as proezas que estão supostas nos modelos de equilíbrio geral. O funcionamento real dos mercados financeiros, na euforia e no desastre dos últimos anos, insistiu em contrariar as hipóteses bem-comportadas sobre os mercados eficientes.

Fecundada nas entranhas da desregulamentação e legitimada pelas patranhas acadêmicas dos mercados eficientes, a organização da finança contemporânea gerou uma bateria de incentivos perversos. No rol de suas façanhas estão a alavancagem abusiva, a obsessão pelo volume, a concorrência sem peias por rendimentos maiores e as remunerações generosas para os executivos e assemelhados.


Diante do colapso dos preços dos ativos, os bancos centrais foram compelidos a tomar medidas de provimento de liquidez e de capitalização dos bancos encalacrados em créditos irrecuperáveis. Para curar a ressaca da bebedeira imobiliária, os governos engoliram o estoque de dívida privada e expeliram uma montanha de títulos públicos que hoje infestam as carteiras dos bancos e dos investidores institucionais. A crise dos governos é a crise dos bancos. A crise dos bancos é a crise de crédito. A crise de crédito é a crise do gasto. E a crise do gasto é a crise da renda e do emprego.

Diz Martin Sandbu em seu artigo no Financial Times: sem a reestruturação dos estoques de dívida, de preferência organizada pelo Banco Central Europeu, não estarão disponíveis as condições para a reanimação dos gastos de investimento e consumo. Mas a coisa não é tão simples: a inevitável perda de riqueza envolvida em tais procedimentos é má conselheira da confiança privada. Entre a taça e os lábios, o líquido pode derramar.Enquanto a inglaterra escorrega na pirambeira da recessão, o primeiro-ministro David Cameron amarga as consequências de suas cumplicidades com os sequazes de Ruppert Murdoch. No continente, sucessivas quedas nos índices trimestrais de produção e o continuado aumento do desemprego atormentam a Espanha, a Itália e outros infelizes da dita periferia. O espanhol Mariano Rajoy lidera o campeonato europeu de impopularidade.

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