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Crise na Ucrânia: onde está a liderança da Europa?

Com a Rússia e os EUA planejando o futuro da Ucrânia, os países da UE só podem vacilar, presos a seu passado fraturado

A alta representante da União Europeia para Assuntos Externos, Catherine Ashton, fala em 17 de abril, em Genebra, na Suíça. Falta liderança aos governos europeus
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Por Dmitri Trenin, em Moscou

A crise na Ucrânia não terminou. A declaração de quatro partes alcançada em Genebra na quinta-feira 17 significa várias coisas. Mas não é o fim de nada. Ela indica que, apesar de suas posições opostas, a Rússia e os Estados Unidos têm alguns interesses sobrepostos que exigem certo grau de cooperação. Além disso, a União Europeia continua a reboque de um processo que ameaça dilacerar o maior país do continente, fora a Rússia, e que fundamentalmente afeta as relações da UE com Moscou. Hoje a Ucrânia é um Estado em falência, basicamente um objeto da diplomacia das grandes potências.

O que também está ficando claro é que o mundo da geopolítica impiedosa, das barganhas políticas desavergonhadas e da pressão econômica declarada é “outro mundo” para muitos na Europa. Existem sinais de liderança europeia propriamente dita? E o continente pode continuar terceirizando sua política externa para os Estados Unidos?

Washington e Moscou se acusam de interferência na Ucrânia e professam sua própria inocência, mas ambas as capitais estão profundamente envolvidas em campo, embora de maneiras muito diferentes. Os EUA apoiam e assessoram o governo de Kiev, que ajudaram a formar. Por sua vez, a Rússia está claramente por trás dos ativistas, muitos deles armados, nas regiões leste e sul da Ucrânia. Washington pretende negar a Ucrânia ao novo império russo que, ela suspeita, o presidente Putin estaria construindo.

Putin, por sua vez, está determinado a evitar que a Ucrânia, sob um regime pró-Ocidente, entre para a Otan e assim possa abrigar bases militares americanas virtualmente dentro do território histórico da Rússia. Uma Ucrânia que aderisse ao clube de democracias ocidentais e aliados dos EUA seria uma boa coisa, pela perspectiva de Washington. No entanto, o caminho é longo, confuso e cheio de problemas, e até perigos, como um choque direto com a Rússia. Mais importante, não é uma prioridade para o governo Obama.

A crise na Ucrânia, a Casa Branca poderia raciocinar, já sensibilizou os aliados europeus dos EUA para a contínua existência do perigo no leste. Assim, deu à Otan um novo estímulo, do qual ela precisa enquanto a missão no Afeganistão chega ao fim. Da perspectiva do Kremlin, uma Ucrânia participante da União Alfandegária forneceria ao projeto eurasiático uma massa crítica em termos de potencial demográfico, industrial e agrícola. Mas a Ucrânia é muito heterogênea, com seus elementos pró-russos mais que equilibrados por antirrussos. Integrar plenamente a Ucrânia seria não apenas muito caro em termos econômicos, como impossível sem isolar suas províncias ocidentais – ligá-las à Ucrânia soviética foi o maior erro de Stálin – e pacificar ou reprimir milhões de ucranianos pró-Europa em todo o país.

Putin não é Stálin. Tendo corrigido a “injustiça histórica” na Crimeia, e demonstrado o grau em que pode influenciar os acontecimentos no leste da Ucrânia, Moscou também pode estar disposta a um acordo. Isso não significa que o acordo já exista ou que, quando aceito, será implementado.

Os partidos da Ucrânia podem não ser atores internacionais no nível das grandes potências, mas em campo na Ucrânia eles têm seus interesses especiais e os perseguem. A triste verdade sobre a revolução de fevereiro em Kiev é que a deposição do presidente Viktor Yanukovych pôs fim ao regime de dominação de um clã, mas não ao sistema oligárquico de governança que o sustentava. O regime oligárquico foi de fato reforçado, sob o olhar supostamente atento do movimento Maidan.

Cinco semanas antes das eleições presidenciais de 25 de maio, as tensões políticas estão altas. Agora não está claro quanto poder um presidente ucraniano terá e sob que constituição. No entanto, o prêmio é extremamente importante, e os candidatos, virtualmente todos do estábulo pré-revolucionário, estão competindo com firmeza. Washington pretende dar as boas-vindas a uma autoridade plenamente legítima em Kiev, ainda mais porque quem ganhar provavelmente confirmará a atual orientação pró-Ocidente de Kiev.

Enquanto isso, Moscou sabe que não tem amigos em Kiev, mas todo mundo também sabe que Moscou tem muita influência antes e depois da eleição ucraniana. Ela pode de fato permitir eleições no leste e assim reconhecer a legitimidade de seus “parceiros” em Kiev – ou pode deixar a votação falhar em diversas áreas e continuar com a política de não reconhecer os “golpistas de Kiev”. A opção dependerá de se haverá compreensão entre, por exemplo, Petro Poroshenko ou Yulia Tymoshenko, os principais candidatos na eleição, e Putin.

Em suas declarações desde o início da crise, Putin elogiou a última por sua condução racional das questões do gás com Moscou e mencionou que o primeiro tinha importantes interesses comerciais na Rússia, ainda não afetados, de modo interessante, pelos acontecimentos recentes.

Aconteça o que acontecer durante e depois das eleições, a Ucrânia avança rapidamente para um abismo financeiro. O FMI, liderado pela UE, prometeu algum alívio, que virá com um pacote de austeridade que poderia causar um tsunâmi de protestos sociais em todo o país. O Congresso americano concordou em fornecer garantias de empréstimo que, na escala das necessidades da Ucrânia, são amplamente simbólicas. O Japão na verdade está dando mais. Quanto à Rússia, não apenas retirou o generoso pacote que ofereceu a Yanukovych, como também aboliu o “desconto político” no preço do gás que cobra da Ucrânia.Com Kiev incapaz de pagar mesmo com desconto, a ameaça de a Gazprom introduzir o “pré-pagamento” pouco antes das eleições na Ucrânia evoca lembranças de antigas guerras do gás, sendo a Europa uma baixa inevitável.

A UE adquiriu uma semelhança de diplomacia conjunta, personificada por lady Ashton, mas o Serviço Europeu de Ação Externa e a presidência do Conselho Europeu não significam uma política externa comum. Em um nível ainda mais profundo, em sua maioria, os países europeus há muito tempo deixaram de ser Estados modernos com um kit de ferramentas clássico e a vontade de usá-lo. Os poucos países que ainda possuem elementos de ambos, como o Reino Unido e a França, deixaram de ser suficientemente grandes para jogar na primeira liga mundial. A Alemanha continua relutando em liderar, ainda imobilizada pelos pesadelos de seu próprio passado. A Polônia é o único caso de país europeu que trabalha para enfrentar os desafios do mundo real, mas sem uma liderança conjunta europeia forte só pode contar com seu principal parceiro transatlântico.

A ideia de um “mundo do século XXI” em que a Europa supostamente vive é enganosa. O mundo real, incluindo todos os vizinhos da Europa, contém grandes nacos do legado de épocas anteriores. E a Europa não pode contar com terceirizar para os EUA, dadas as mudanças nas prioridades globais americanas. Os EUA precisam de um parceiro forte, capaz e independente. A Rússia também estaria melhor com um vizinho que não se limite a comercializar e moralizar.

Em 21 de fevereiro, Moscou ficou chocada quando a UE aceitou passivamente a elaboração de um acordo entre Yanukovych e a oposição que os ministros europeus haviam acabado de mediar. Está na hora de a Europa começar a aprender novamente a conduzir.

Dmitri Trenin é diretor do Centro Carnegie em Moscou

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