Mundo
Em ebulição
Julho torna-se o mês mais quente da história do Hemisfério Norte. O tempo para as soluções escorre pelos dedos


O mês de julho incendiou os últimos argumentos dos céticos.
Após quatro semanas de temperaturas acima da média no inverno do Hemisfério Sul e ondas de calor extremo no verão do Hemisfério Norte, o período foi considerado, pela Organização Meteorológica Mundial, o mais quente da história, com média mundial de 17 graus Celsius. Após dois episódios, em 2016 e 2020, esta é a terceira vez que um mês específico supera o que, na opinião de inúmeros cientistas, pode ser o ponto de não retorno se a tendência for mantida. “A era do aquecimento global acabou. Agora é a hora da fervura global. A mudança climática está aqui, e isso é apenas o começo”, alertou o secretário-geral da ONU, António Guterres.
O quadro de incêndios, tempestades e inundações que se estabeleceu em regiões diversas do planeta castigou com mais severidade a América do Norte, a Europa e o Japão, mas atingiu sem distinção, seja com secas severas, seja com tufões sucessivos, países como China, Índia, Paquistão, Argentina e Bolívia, entre outros. Os dados coletados pela OMM revelam: 15 nações tiveram, em julho, as maiores temperaturas já registradas. As consequências puderam ser vistas no espetacular incêndio florestal que tragou casas e expulsou moradores e turistas da ilha grega de Rhodes, no calor próximo a 60ºC que torrou turistas no deserto da China ou na tempestade tropical que varreu quarteirões residenciais nas Filipinas. Nas estimativas da Organização Mundial da Saúde, cerca de 60 mil seres humanos, em sua maioria idosos, morreram na onda de calor que assolou a Europa no ano passado, e a expectativa é de que o recorde seja superado neste ano.
Os mares e oceanos também padecem. No Polo Sul, geleiras encolhem e a camada sobre as águas nunca foi tão fina, alertam os cientistas. No Polo Norte, há partes do mar que não mais congelarão, o que pode ser fatal para boa parte da fauna local. O aquecimento provoca ainda uma devastação nos corais do Atlântico Norte e ameaça a Grande Barreira de Corais próxima à costa da Austrália. Como nada é tão ruim que não possa piorar, a OMM confirmou a ocorrência de um “super” El Niño, fenômeno climático caracterizado pelo aumento da temperatura das águas superficiais do Pacífico e que poderá ser o mais acentuado e duradouro de todos os tempos. Além do prejuízo para a fauna, as águas mais quentes, com suas consequentes mudanças nas correntes marítimas e regime de ventos, são sinônimo de um aumento inevitável e significativo da ocorrência de furacões e tempestades tropicais.
“Agora é a hora da fervura global”, lamenta António Guterres, secretário-geral da ONU
Os líderes mundiais continuam, porém, alheios à situação do planeta. Dois encontros de cúpula consecutivos realizados em Chennai, na Índia, reuniram, na última semana de julho, os ministros da Energia e do Meio Ambiente dos países do G-20 e não houve consenso. O primeiro grupo não se entendeu sobre uma meta mínima de redução do uso de combustíveis fósseis. O segundo tampouco conseguiu acertar um porcentual de redução das emissões de gases de efeito estufa a partir de 2025. As reuniões aconteceram na mesma semana em que a OMM anunciou o recorde de temperatura e que a Agência Internacional de Energia informou que o consumo de 8,3 bilhões de toneladas de carvão em 2022 foi o maior da história. É um quadro “desesperador”, define Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. “Quando olhamos para esses encontros do G-20 e para as reuniões intermediárias sobre o clima, a sensação que se tem é de que, lá dentro das salas com ar-condicionado e carpete, o ritmo é bem diferente daquele da crise climática. Os debates ainda são muito lentos e etéreos e, da porta dessas reuniões para fora, a crise é uma realidade.”
Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental, Carlos Bocuhy avalia que o cenário de instabilidade política global “aponta para um descaminho” nas discussões climáticas. “O conflito Rússia-Ucrânia, os entraves China-Taiwan, tudo isso eleva a tensão global e os esforços se distanciam dos interesses maiores da humanidade em combater as mudanças climáticas. Ao contrário, a disputa armamentista e bélica leva a uma intensificação dos aparatos militares baseada em combustíveis fósseis.” Os países do G-20, diz o especialista, esquivam-se de acordos sobre matrizes limpas porque estes vão de encontro à renovada preocupação com o poderio militar. “Não se esperava, no pós-Acordo de Paris, que um novo conflito armado ganhasse proporções globais. Assim, o acordo passou a ser uma agenda secundária. Quem se senta às mesas de negociação faz o discurso da sustentabilidade, mas rema em direção à sua segurança doméstica e interesses geopolíticos. Nesse estado de beligerância e tergiversação, nada de significativo a se esperar da COP-28. Está havendo uma clara sinalização de que as multinacionais dos setores de carvão, óleo e gás vão lutar para prosseguir com suas atividades poluidoras.”
Compromisso. Marina Silva celebra a cúpula dos países amazônicos em Belém do Pará. Fernando Haddad prepara para este semestre o pacote de transição sustentável – Imagem: iStockphoto e Sandra Blaser/WEF
Bocuhy faz referência à próxima conferência que discutirá as mudanças climáticas, marcada para novembro em Dubai e cercada de polêmicas. “Teremos uma COP do clima nos Emirados Árabes, na qual o presidente é também presidente da segunda maior petroleira do país. Essa petroleira tem como meta aumentar em 25% a extração de petróleo até 2030”, lamenta Astrini.
Coordenador da Coalizão pelo Clima, Pedro Aranha acredita que “a COP de Dubai será um fracasso, uma infelicidade, a COP dos petroleiros”. Enquanto os compromissos não forem obrigatórios, acredita o ambientalista, nenhum governo se moverá. “Estamos muito próximos de uma migração em massa. A Europa está 2,3ºC mais quente e o Sul global, 1,12ºC mais quente. É preciso ter clareza de que ou a humanidade muda o modelo de desenvolvimento econômico ou está fadada à extinção. Não existe outro caminho.”
Após sua participação na reunião dos representantes do G-20, a ministra Marina Silva disse a CartaCapital que “as políticas globais atuais são incompatíveis com o que estabelece o Acordo de Paris”, e que “é preciso combater as causas e não somente os efeitos da mudança do clima”. Na Índia, Marina afirmou que o Brasil tem feito a sua parte, após quatro anos de desmonte dos órgãos ambientais. “Em seis meses de governo, a área sob alerta de desmatamento na Amazônia caiu 34% em relação ao mesmo período do ano anterior. Houve aumento de 166% das autuações no bioma no semestre, com a retomada das operações do Ibama.”
O momento é propício para o Brasil assumir seu esperado papel entre os líderes do combate ao aquecimento global e o governo aposta suas fichas no encontro da chamada Cúpula da Amazônia. “As discussões reunirão os oito países amazônicos pela primeira vez após 14 anos e é mais uma contribuição nossa para fazer frente à crise climática. Temos o compromisso de zerar o desmatamento até 2030, e a proposta será levada para os outros países do bloco, como anunciou o presidente Lula”, diz a ministra.
O Brasil promete para o segundo semestre o anúncio do plano de transição sustentável
Não só o governo espera bons resultados da Cúpula da Amazônia. A comunidade científica, movimento socioambiental e empresários, reunidos em eventos prévios ou paralelos, estão otimistas. Na quinta-feira 3, encerrou-se em Manaus o seminário “Ciência Por e Pela Amazônia”, organizado pela Academia Brasileira de Ciências, em parceria com a Rede Interamericana de Academias de Ciência, para discutir o desenvolvimento de “soluções sustentáveis” para a região. “Um encontro para promover a ciência feita na Amazônia e pela Amazônia é central neste momento de preparação para a COP-30, daqui a dois anos no Brasil. Sem ciência, não é possível construir a sustentabilidade que buscamos para o planeta como um todo, mais especialmente para o bioma amazônico, tão estratégico para as metas que queremos atingir até 2030”, diz Helena Nader, presidente da ABC.
Anfitrião da Cúpula da Amazônia, Lula receberá os colegas de Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, além de possíveis convidados como Emmanuel Macron, presidente da França, “único país europeu a fazer fronteira com o Brasil” por conta da Guiana Francesa. A expectativa do governo brasileiro é de que as nações redijam uma posição conjunta a ser levada à Assembleia-Geral da ONU, em setembro, e à COP de Dubai, no fim do ano. Entre as novidades está o anúncio da criação de um comitê de especialistas para monitorar as mudanças climáticas na Amazônia, uma versão regional do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU. Também podem ser anunciados recursos para dar nova vida ao Observatório Regional Amazônico (ORA), que funciona na sede da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (Otca), em Brasília, e produz boletins climáticos e alertas de seca, chuva forte, incêndios e contaminação das águas. Segundo Marina Silva, o governo trabalhará para que a cúpula “não saia só com o enunciado, mas também aponte como viabilizar os resultados que poderão ser produzidos”. Além disso, o Palácio do Planalto promete para o segundo semestre o plano de transição sustentável. Sob coordenação do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o projeto pretende estabelecer as bases da neoindustrialização, ancorada na descarbonização e no desenvolvimento de tecnologia menos poluidora.
Segundo Aranha, não adianta pensar em “pacote verde” se o País não tiver um plano efetivo para as emergências climáticas. “Quais são as políticas para a adaptação, mitigação e enfrentamento das mudanças climáticas, principalmente no Cerrado e na Mata Atlântica? Quais as perspectivas para o calor infernal que o Sudeste vai enfrentar no próximo verão? O que tem sido pensado para mitigar o calor de 50 graus no Rio de Janeiro em 2024 com o El Niño? Como enfrentar as chuvas extremas no litoral paulista?” Astrini ressalta que o pacote a ser anunciado não tratará da questão do desmatamento, mas abarcará outros setores. “É interessante saber que o governo está desenvolvendo uma visão estratégica ambiental na área econômica, mas é um pacote que ainda precisa ser muito debatido e aprofundado. Esperamos que o governo abra interlocução a respeito.” •
Publicado na edição n° 1271 de CartaCapital, em 09 de agosto de 2023.
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