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Em carne e osso
‘Os Diplomatas e Suas Histórias’ entrelaça momentos tensos, cruciais e divertidos de 26 embaixadores


Num momento em que a diplomacia mundial é desafiada a atuar para dissipar a turbulência e no Brasil os diplomatas foram jogados no ostracismo pelo governo atual, uma obra essencial lança luzes sobre o trabalho desses profissionais. O livro Os Diplomatas e Suas Histórias, organizado pela embaixadora aposentada Leda Lucia Camargo, traz relatos dela e de mais 25 embaixadores – cinco estrangeiros incluídos – sobre suas experiências em situações de paz, guerra ou em complicadas negociações internacionais.
É uma obra única, sem pretensões acadêmicas, com textos de diplomatas aposentados e da ativa, de relevante interesse para jovens profissionais da área, estudiosos de Relações Internacionais ou a quem tenha curiosidade intelectual sobre uma atividade pouco conhecida do cidadão comum. E é, por que não, uma reação à possível decadência do Itamaraty.
O livro mostra o verdadeiro sentido da existência da carreira diplomática e responde a duas questões básicas que parecem simples, mas são dignas de muita reflexão: “Para que serve diplomacia? O que faz o diplomata?” As explicações vêm pelos episódios reais vividos pelos convidados. Os diplomatas se abriram no livro, sem nenhum compromisso com o silêncio frio, enigmático e às vezes vazio que tanto incomoda quem não é afeito à área.
Entre os que dão seu testemunho estão alguns célebres, como Celso Amorim, Rubens Ricupero, Marcos Azambuja, Roberto Abdenur e Luiz Felipe Seixas Correia, e outros menos conhecidos, mas com experiência igualmente rica e densa nos quatro pontos do planeta. São 458 páginas, com histórias as mais variadas possíveis, numa abordagem que vai da nostalgia e curiosidades da carreira a revelações históricas inéditas, que ajudam a entender, por exemplo, a espionagem praticada pelas grandes potências contra países como o Brasil.
Experiente diplomata, com passagens por embaixadas como as de Washington e Pequim, Abdenur faz um relato minucioso sobre questões de segurança nas comunicações internas do Itamaraty. Curioso é que, em sua trajetória profissional, sempre partiu do princípio de que as comunicações com Brasília seriam inevitavelmente interceptadas pelos EUA ou outras potências. Pelos Estados Unidos, mais ainda, pois, como observa, lá há 16 tipos diferentes de serviços de espionagem, com a chamada Intelligency Community a envolver mais de 800 mil profissionais de diferentes especialidades. Foi o que se viu no governo Dilma Rousseff, com telefones do Palácio do Planalto grampeados pela NSA, o que a obrigou a cancelar uma visita aos EUA e fez o Itamaraty desencadear uma operação nos foros multilaterais em defesa da privacidade e do sigilo das comunicações.
OS DIPLOMATAS E SUAS HISTÓRIAS. Leda Lucia Camargo (org.). Editora Francisco Alves (458 págs., 72,25 reais)
Ricupero traz revelações importantes sobre um episódio pouco conhecido e explorado: a intenção de invasão, pelos EUA, do Suriname, em 1983, em plena ditadura no Brasil. Por um triz o País não entrou na trama de Ronald Reagan, o que abriria caminho para uma inédita intervenção dos EUA na América do Sul. O temor dos EUA e do Brasil era de que o sargento Bouterse, que dera um golpe de Estado, alinhasse a ex-colônia holandesa a Cuba. Ricupero detalha a enorme operação diplomática e militar feita pelo Brasil para convencer o Suriname que o apoio econômico e militar brasileiro seria melhor que o cubano. Deu tudo certo, mas houve momentos dramáticos, relembra o embaixador.
Azambuja, em memórias alentadas após décadas como diplomata, alfineta o atual governo no Brasil. Enquanto em administrações anteriores havia apenas alguma reorientação de prioridades e de discurso, hoje o Brasil se afastou de maneira abrupta de posições consagradas na longa prática diplomática. Curiosa a confissão dele de que diplomatas e adidos brasileiros fizeram treinamento de tiro, nos anos 1970, na então conturbada Argentina.
Destaque para um episódio ocorrido há 50 anos, em nome do interesse nacional. O embaixador Márcio Dias revela uma intrincada operação de envio, por canais não oficiais, “heterodoxos” – contrabando mesmo, na linguagem comum – nos anos 70, da Austrália para o Rio Grande do Sul, de reprodutores merino, raça de carneiro famosa pela qualidade de sua lã.
É excepcional o relato da embaixadora Irene Vida Gala, uma das maiores especialistas brasileiras em história da África. Com larga experiência em postos no continente, ela conta vários episódios de sua atuação profissional, incluídos casos de racismo sofridos no Brasil por empresários, pilotos e outros profissionais africanos. Sem as nuances de linguagem comuns à diplomacia, ela é incisiva ao denunciar que o Brasil precisa superar essa mazela histórica. A embaixadora Leda Lucia Camargo também pormenoriza sua experiência na África e em outros países, assim como o embaixador Flávio Macieira, que atuou, entre outros postos, na embaixada do Brasil no Iraque à época da guerra daquele país contra o Irã.
A obra reúne histórias curtas de distinta natureza e temática, que transitam sem cerimônia e às vezes vertiginosamente pelo mapa-múndi, mudando cenários, fisionomias, mesas de negociação e momentos históricos. Textos em uma atmosfera bem-humorada, sobretudo nos relatos sobre acontecimentos e situações inesperadas, inclusive complexas negociações como a aproximação com a China, a quebra de patentes de remédios contra a Aids, divergências com os EUA… E há relatos francamente hilários, que passam ao largo de dramas e crises e tocam mundos paralelos, importantíssimos para a atividade diplomática, abrangendo a vida familiar, a manifestação artística, o esforço de adaptação a realidades sociais e culturais diferentes.
Os Diplomatas e Suas Histórias é um livro nascido da pandemia e também da necessidade, tanto perene quanto conjuntural, de defender a diplomacia como atividade voltada para a paz, o convívio humano, a defesa legítima da soberania, do meio ambiente e o desenvolvimento dos povos e nações. Conjunturalmente, encontra um momento internacional em que a atividade diplomática se afigura particularmente necessária para a recuperação da paz sistêmica e, localmente, como instrumento para tirar o País do triste posto de pária internacional ao qual foi alçado pelo atual governo. Ademais, a obra traz elementos para o leitor julgar se a existência da estrutura diplomática se justifica ou não. Leitura essencial. •
*O autor é jornalista.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Em carne e osso “
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