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Em busca do quarto mandato, Evo Morales enfrenta uma eleição incerta

Os bolivianos dirão neste domingo se uma década e meia de crescimento justifica mais quatro anos no poder

Como se fosse a primeira vez. Morales intensifica a campanha, enquanto as pesquisas divergem sobre o resultado do primeiro turno
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Pacha Mama, a “Mãe Terra”, é a divindade superior dos indígenas dos Andes, a deusa a quem Evo Morales, da etnia Uru-Aimará, recorre nos momentos difíceis. No domingo 20, Morales saberá se Pacha Mama atendeu as suas preces. A última pesquisa do instituto Ipsos nas cinco principais cidades da Bolívia, finalizada no início de outubro, indica que sim. O presidente em busca de um quarto mandato, aponta o levantamento, teria 40% dos votos e abriria uma vantagem de 18 pontos porcentuais sobre o segundo colocado, Carlos Mesa (22%), suficientes para garantir a vitória no primeiro turno.

Em um país onde as pesquisas conseguem ser menos confiáveis do que as realizadas no Brasil, a equipe de campanha de Morales prefere manter certa cautela. Outro levantamento mais recente, divulgado na sexta-feira 11 e realizado pela Universidade Mayor de San Andrés, desenha outro cenário: a diferença entre o presidente e Mesa seria de apenas 5 pontos, 32% a 27%. No segundo turno, os dois estariam tecnicamente empatados, com uma vantagem decimal para o opositor (35,8% a 35,5%). A enquete da universidade não é reconhecida pelo Tribunal Eleitoral.

Caso a prosperidade econômica e o bem-estar social fossem os únicos fatores a pesar nas eleições, não haveria motivo para ansiedade no Palácio Quemado, sede do governo em La Paz. Em 14 anos e três mandatos consecutivos, a Bolívia destoou dos altos e baixos da América do Sul: cresceu em média 5% ao ano, sustentada pelo boom das commodities e vitaminada por políticas sociais inspiradas nos programas do PT. A extrema pobreza recuou de 38% para 15% da população e a pobreza caiu de 60% para 39%. Morales também moldou um país mais contemporâneo e republicano. Antes da chegada do líder cocalero ao poder, em 2006, a Bolívia nem sequer possuía um Supremo Tribunal, enquanto os ministros da Fazenda cultivavam o hábito de passar metade da semana em Miami. 

“Não é só a economia, estúpido”, alguém poderia dizer neste caso. A insistência em atropelar as leis em busca de mais quatro anos no poder causou certa repulsa em uma parcela do eleitorado que sempre confiou em Morales e reanimou a oposição golpista que andava em silêncio. O clima político obrigou o presidente a intensificar a campanha na reta final e a lembrar os eleitores do sucesso econômico nunca antes experimentado pelos bolivianos. A campanha explora ainda o temor de um ardil supostamente tramado pelos opositores no caso de nova derrota nas urnas. Morales tem alertado os correligionários nos comícios. Retórica eleitoral? “Temos gravações, alguns comitês cívicos de Cochabamba ou La Paz”, afirmou na segunda-feira 14, “com alguns ex-militares ou militares, com alguns integrantes do Comitê Civíco de Santa Cruz… Eu tenho gravações, eles querem queimar a Casa Grande del Pueblo.”

O risco imediato continua a ser, no entanto, um desempenho de Mesa acima do esperado no domingo 20. O maior opositor é um arremedo de Fernando Henrique Cardoso, cuja carreira política parecia encerrada. Ex-jornalista, historiador, apresenta-se como  moderado, embora nunca tenha feito qualquer gesto a favor da democracia quando havia de fato uma tentativa de derrubar Morales e prosperava o desejo de separatismo de Santa Cruz de La Sierra, cidade mais desenvolvida do país, misto de São Paulo com Campo Grande, cujo principal ponto turístico é um míni-Cristo Redentor. Mesa governou o país por seis meses, entre outubro de 2004 e março de 2005, no período mais turbulento da história recente da Bolívia. A Presidência caiu em seu colo após a renúncia de Gonzalo Sánchez de Lozada, incapaz de conter a “guerra do gás”. Os massivos protestos contra a privatização do principal recurso natural foram, a exemplo das manifestações no Equador neste mês, liderados por indígenas. A revolta popular pavimentaria a eleição de Morales em 2006 e a ascensão do Movimento para o Socialismo, partido de sustentação do governo.

Termine ou não no domingo 20, a eleição marcará a consolidação de um fenômeno até então irrelevante na Bolívia. As pesquisas projetam de 6% a 7% de votos para Chi Hyun Chung, médico e pastor evangélico nascido na Coreia do Sul que baseia sua campanha em uma retórica agressiva e retrógrada. Chung classifica o culto a Pacha Mama como uma “armadilha do diabo”, promete governar com a Bíblia na mão, defende a “cura gay” e exorta as mulheres a se “comportarem como tal”, caso queiram escapar da violência doméstica e do feminicídio. No início da corrida eleitoral, afirmou que a ex-candidata a vice-presidente em sua chapa tinha “alma de dona de casa”. Paola Barriga, a vice, não gostou da figura de linguagem e se desligou da campanha. Chung responde a 19 processos na Justiça, 13 por descumprir as leis trabalhistas bolivianas. “Ele é uma imitação de Bolsonaro”, resume o sociólogo Jorge Komadina. “Um reacionário a aproveitar um momento de incerteza eleitoral.” O sul-coreano lançou-se há menos de dois meses, em um processo controverso no próprio partido.

Os bolivianos dirão no domingo 20 se uma década e meia de crescimento justifica mais quatro anos no poder

Como Bolsonaro, o pastor não perde a oportunidade de declarar seu amor pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e tornou-se expert em espalhar fake news nas redes sociais. Chung é um subproduto do avanço evangélico no país. Os neopentecostais representam atualmente 17% da população boliviana e, ironia das circunstâncias, prosperaram nos últimos 14 anos. Sua base concentra-se nos pequenos agricultores Quíchua e Aimará. Em maio, Morales assinou um decreto que concedeu aos templos evangélicos o mesmo status do catolicismo, única fé legalizada no país até aquela data. Caso as urnas confirmem as pesquisas, Chung terminaria em terceiro lugar no primeiro turno, à frente do empresário Oscar Ortiz, versão andina do governador paulista João Doria. 

“Ele é a prova de uma insurgência contra os direitos humanos, a diversidade sexual, até a própria constituição política do Estado”, avalia Komadina. “O que preocupa não são as declarações em si, mas o efeito que elas provocam. Especialmente entre eleitores jovens.” Neste caso, Pacha Mama precisa de muitos rituais.

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