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Eles não têm olhos azuis

O conflito na Etiópia, maior crise humanitária em curso, não merece a atenção do planeta

Vítimas preferenciais. Mulheres e crianças pagam o preço da disputa territorial. Estupros, raptos e fome se alastram em meio à guerra - Imagem: iStockphoto
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As esperanças de alívio rápido para milhões de civis ameaçados de desnutrição, doenças e ataques diretos na região de Tigray, no norte da Etiópia (leste da África), foram frustradas nos últimos dias, pois as muito esperadas negociações de paz foram adiadas sem nova data. A reunião entre os lados em conflito há dois anos teria sido a primeira desde que um cessar-fogo foi interrompido no fim de agosto.

Desorganização, questões logísticas e falta de consulta antecipada dos principais participantes parecem, no entanto, ter inviabilizado a iniciativa da União Africana, órgão que representa mais de 50 países do continente.

O conflito entre a Frente de Libertação Popular do Tigray (TPLF na sigla em inglês), organização política que governa a região há décadas, e as forças do governo central etíope começou em novembro de 2020. As forças federais são apoiadas por tropas da vizinha Eritreia, bem como por paramilitares locais, o que complica qualquer negociação de paz. William Davison, especialista em Etiópia do Grupo de Crise Internacional, disse que o esforço diplomático está muito atrasado. “Também há muita atividade militar, com relatos de dezenas de milhares de mortes em combate apenas nas últimas seis semanas”, afirmou.

O TPLF acolheu cautelosamente a nova iniciativa da UA, mas solicitou mais informações sobre os participantes, agendas e medidas de segurança para seus delegados, revelam documentos vistos pelo Observer. “Estamos comprometidos com uma resolução pacífica do conflito atual… mas precisamos de esclarecimentos para estabelecer um início auspicioso para as negociações de paz”, disse em uma carta enviada à UA o líder do TPLF, Debretsion Gebremichael.

Analistas dizem que poderá ser difícil levar os dois lados à mesa quando as batalhas ainda são travadas. Houve combates ferozes em torno da cidade de Kobo durante grande parte de setembro, embora os confrontos mais intensos sejam agora em áreas mais ao norte, perto da fronteira com a Eritreia. O Tigray está sob bloqueio desde o início da guerra, com ajuda humanitária limitada. A maioria das comunicações foi cortada, enquanto os serviços bancários e comerciais cessaram. Os cuidados de saúde são reduzidos a níveis mínimos na medida em que as instalações fecham e a medicação acaba.

Nenhuma resolução duradoura será possível sem um cessar-fogo temporário e o fim do bloqueio, alertam os analistas, mas nenhum dos lados parece disposto a fazer as concessões necessárias. O verdadeiro número de mortos é desconhecido, mas pode se aproximar de níveis que tornam o conflito um dos mais letais do mundo. Sem acesso a jornalistas independentes e com uma presença limitada de trabalhadores humanitários internacionais, dados confiáveis são escassos.

Calcula-se que 13 milhões de deslocados na região de Tigray precisam desesperadamente de comida

O chefe da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom Ghebreyesus, sugeriu que o racismo pode contribuir para o desinteresse internacional por um conflito tão mortal. Ghebreyesus – que é da etnia tigray – disse em agosto que a situação causada pelo conflito em seu país de origem é pior do que qualquer outra crise humanitária no mundo, antes de perguntar se a falta de engajamento global poderia estar ligada “à cor da pele das vítimas”.

Mais de 50 civis foram mortos num ataque aéreo a uma escola no norte de Tigray que abrigava moradores deslocados pelo conflito, disseram trabalhadores humanitários e forças locais. O ataque na cidade de Adi Daero, a cerca de 40 quilômetros da fronteira com a Eritreia, na terça-feira 4, parece ser um dos mais mortais ocorridos durante o conflito.

A escola estava numa lista de locais que abrigam deslocados internos enviada pela ONU ao Ministério das Relações Exteriores da Etiópia em janeiro, segundo trabalhadores humanitários e fontes da organização. Uma testemunha descreveu o ataque como uma “carnificina total”. O governo negou alvejar civis no conflito.

Trabalhadores humanitários na região disseram que o TPLF fez avanços rápidos em direção à fronteira nas últimas semanas, mas foi forçado a recuar quando as tropas ficaram sob fogo contínuo da artilharia eritreia. As tropas do país vizinho estavam fortemente engajadas na mais recente luta, o que levou as autoridades locais a começar a mobilizar novos recrutas, até homens mais velhos antes poupados.

Analistas e diplomatas têm repetidamente levantado preocupações de que o conflito ameace desestabilizar uma faixa do Leste da África. “Neste momento, é basicamente apenas uma repetição do que vimos no ano passado: um vaivém sem ninguém capaz de dar um golpe decisivo. Parece que foi contido (em Tigray)… mas ver os relatórios de segurança de toda a região é simplesmente estonteante”, disse um humanitário sênior da região que trabalha no conflito, sob anonimato.

Os envolvidos são acusados de abusos generalizados dos direitos humanos. Investigadores apoiados pela ONU disseram no mês passado que encontraram evidências de crimes de guerra e contra a humanidade cometidos por forças do governo etíope, forças tigray e militares da Eritreia, incluídos estupros, assassinatos e pilhagem.

O governo da Etiópia havia dito que a investigação da comissão da ONU é “motivada politicamente”. Os investigadores descreveram “uma escalada nos ataques de drones, carregados de armas explosivas com efeitos expansivos em áreas povoadas”, após o surto de combates renovados.

Centenas de milhares de civis foram deslocados nas últimas semanas, mas a violência renovada interrompeu até mesmo o fluxo limitado de ajuda. A ONU diz que os combates deste ano deixaram cerca de 13 milhões de civis em Tigray e nas regiões vizinhas controladas pelo governo de Amhara e Afar em “necessidade desesperada de assistência alimentar”.

O governo do primeiro-ministro Abiy Ahmed acusa o TPLF, que desempenhou um papel de liderança na coalizão governante da Etiópia até Abiy chegar ao poder, em 2018, de tentar reafirmar o domínio tigray sobre todo o país. Líderes da etnia acusam Abiy de comandar um governo repressivo e de discriminação étnica. Ambos negam mutuamente as acusações. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Eles não têm olhos azuis “

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