Mundo

‘Eleições na Bolívia mostram que política externa terá que ser revista’, diz professor

Bolsonaro apoiou golpe contra Evo Morales e reconheceu presidente interina

‘Eleições na Bolívia mostram que política externa terá que ser revista’, diz professor
‘Eleições na Bolívia mostram que política externa terá que ser revista’, diz professor
Apoie Siga-nos no

Após um ano sob um governo interino e com seu ex-presidente exilado na Argentina, tudo indica que a Bolívia escolheu neste domingo 18 trazer a esquerda de volta para o poder. Os dados de pesquisa de boca de urna do instituto Ciesmori apontam vitória em primeiro turno de Luis Arce, candidato do MAS, apoiado por Evo Morales.

A vitória já foi reconhecida pela presidente interina, Jeanine Añez, e pelo candidato e ex-presidente Carlos Mesa, ambos opositores de Evo.

De acordo com o professor de relações internacionais da PUC-SP e especialista em América do Sul Arthur Murta, a política externa do governo brasileiro deverá ser revista com o novo cenário.

“Se Biden ganhar nos EUA, Bolsonaro perderá seu guarda-costas [Donald Trump] e estará em conflito com os principais parceiros comerciais do Brasil:  China, Europa, Argentina e também a Bolívia. A política externa de Bolsonaro será obrigada a ser revista, caso contrário Brasil vai entrar em cenário total de isolamento”, diz o professor.

Murta considera o fato do Brasil ter tomado lado na crise boliviana muito arriscado, e que a vitória de Arce não favorece Bolsonaro.

“A parte boa de tudo isso é que a Bolívia precisa do Brasil. O novo presidente foi ministro da Economia durante quase todos os anos do governo Evo e sempre manteve um acordo muito positivo com o Brasil. Arce é um cara pragmático e provavelmente adotará essa postura em seu governo. Certamente, ele não entrará com ruptura com o Brasil”, diz.

Confira a entrevista completa: 

CartaCapital: Você acha que a possível vitória da esquerda no primeiro turno explicita um golpe nas eleições de 2019, quando tirou Evo Morales do poder?

Arthur Murta: Com certeza. O que eu acho interessante olhar, pensando principalmente nos dois principais opositores de Evo [Luis Camacho e Carlos Mesa] é que em 2019, quando houve o golpe na Bolívia e todo o levante popular que aconteceu, havia um entendimento de que os dois juntos representariam o que à época seria a maioria da Bolívia.

Houve essa sensação nas ruas e é importante lembrar que alguns partidários histórico do MAS também estavam em alguma medida reticentes com o que estava acontecendo naquele momento, porque o Evo estava encaminhando para o quarto mandato, e havia insatisfação com o que tinha acontecido com o lítio. O Evo tinha fechado acordo entre Bolívia e Alemanha, que é uma questão bastante complexa. A questão do lítio é central para entender o que aconteceu na Bolívia ano passado. O acordo, que foi feito entre o governo de Evo e o governo alemão para que uma multinacional alemã se instalasse na Bolívia, era um acordo que foi mal interpretado,  como se fosse a Bolívia estivesse se vendendo para o capital estrangeiro, sendo que Evo sempre defendeu que isso não aconteceria.  Alguns partidários do MAS também ficaram insatisfeitos com Evo Morales. Então, logo após as eleições do ano passado, criou-se essa imagem na Bolívia de que havia ali uma traição por parte do Evo e, portanto, Luis Camacho e Carlos Mesa representariam juntos o que era a nova vontade popular da Bolívia.

As eleições de ontem certamente apontam que o golpe foi de fato um golpe e um golpe em todos os sentidos: político, militar e também de comunicação. Esses dois grupos conseguiram se comunicar, eles conseguiram mandar para a população uma mensagem. Então, a vitória de ontem deixa claro que foi um golpe em todos os sentidos e que a população boliviana, depois de quase 1 ano de um governo que claramente não estava trabalhando para a maioria da população, entendeu que aquilo foi uma ruptura e fica evidente que Carlos e Camacho não representam a maioria. A maioria se sente representada pelo MAS. E é mais que uma população à esquerda, e sim uma população que acredita no desenvolvimento econômico nacional atrelado a uma Bolívia voltado para o exterior, mas sem esquecer o que é o desenvolvimento interno.

CC: Como fica a Bolívia agora?

Arthur Murta: A situação fica bem complicada porque precisamos entender como os grupos de direita vão reagir à vitória de Luis Arce. Um ponto importante também é a gente olhar para a composição do Senado, que o MAS também conseguiu avançar. Porém, o MAS não tem a maioria qualificada, que é 2/3 das cadeiras. Então o novo presidente vai ter que fazer negociações com os outros dois partidos. Não será um governo dos mais confortáveis para o MAS. O país está dividido, há uma polarização visível. Será um governo complicado.

CC: Como o resultado afeta o Brasil e a América Latina?

Arthur Murta: O Brasil tomou uma posição muito arriscada no ano passado com o golpe que aconteceu na Bolívia. A Bolívia e o Brasil mantêm relações comerciais muito importantes. A Bolívia compra da gente produtos manufaturados, que é o que todo país quer. Então, quando o ministro Ernesto Araújo reconhece o golpe e a presidente interina Jeanine Añez, ele está tomando uma posição política completamente equivocada. A parte boa de tudo isso é que a Bolívia precisa do Brasil. Luis Arce foi ministro da Economia durante quase todos os anos do governo Evo e sempre manteve um acordo muito positivo com o Brasil. Arce é um cara pragmático e provavelmente adotará essa postura em seu governo. Certamente, ele não entrará com ruptura com o Brasil

Para América Latina é muito cedo para falar em volta da esquerda. Mas agora vale destacar o jogo da Argentina, que é um parceiro comercial importante para a Bolívia, principalmente porque toda a produção de lítio do mundo está entre Argentina, Bolívia e Chile, o triângulo ABC do lítio. Com a expansão dos carros elétricos, o lítio é fundamental para as baterias. Então se a gente fosse pensar em uma possível integração na produção de lítio na América do Sul, o governo argentino deu um gol, porque concedeu refúgio ao Evo, não reconheceu o governo de Janine, e agora tem tudo para ser um sócio importante.

CC: A direita vai deixar o poder na Bolívia. Se Biden vencer, Bolsonaro ficará isolado?

Arthur Murta: Eu não sei se Bolsonaro fica isolado, porque você ainda tem Uruguai, Paraguai, Chile, o próprio Peru e a Colômbia. Todos com governos à direita. É claro que o retorno à esquerda na Bolívia começa a mudar um pouco esse cenário de uma América Latina 100% de direita. De fato, na região existem mais governos de esquerda do que a gente estava vendo nesses últimos tempos. Uma possível vitória do Biden nos EUA não é uma vitória boa para as esquerdas. Os democratas nos EUA tendem a ser mais intervencionistas que os próprios republicanos. No caso do Bolsonaro, se Biden ganhar, o presidente brasileiro perderá seu guarda-costas [Donald Trump] e estará em conflito com os principais parceiros comerciais do Brasil:  China, Europa, Argentina e também a Bolívia. A política externa de Bolsonaro será obrigada a ser revista, caso contrário, o Brasil vai entrar em cenário total de isolamento.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo