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Ele queria comprar o mundo

O recém-falecido Silvio Berlusconi foi delinquente a comandar a política no país por quatro vezes, com o dinheiro e o apoio da máfia

Imagem: Roberto Solomone/Controluce/AFP
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Enredo novelesco: o remediado cantor de boate em cruzeiros mediterrâneos, sempre a bordo de luxuosas embarcações, torna-se empresário, o mais rico de seu país e um dos mais endinheirados do mundo, graças ao seu extraordinário tino para os negócios. O entrecho real, a bem da verdade, é outro, embora não falte a Silvio Berlusconi, o nosso herói, talento para negócios escusos. A singular figura de 86 anos acaba de falecer em Milão, vitimado por uma leucemia carregada por 15 anos e, ao cabo, fatal.

Quatro vezes primeiro-ministro da Itália, ele ganha um funeral com honras de Estado, a despeito dos veementes protestos do ex-premier Giuseppe Conte e da ex-ministra Rosy Bindi. Ele, do Movimento 5 Estrelas, e ela, do Partido Democrático, não foram ouvidos pelo presidente Sergio Mattarella, a cumprir as demandas da Constituição com a expressão beatífica de quem foi reeleito graças a uma alteração introduzida em outro momento, que levou à rejeição do comunista Giorgio Napolitano pela maioria parlamentar então de esquerda, a observar em Napolitano condições para liquidar de vez com Berlusconi. Tudo o que se conseguiu, à época, foi que o alvo fosse atingido por uma prisão domiciliar e a obrigação de usar tornozeleira por um ano.

O premier pretensamente socialista Bettino Craxi permitiu a Berlusconi a compra de uma televisão com o dinheiro do Cosa Nostra garantido pelo senador Dell’Utri, intermediário do negócio irregular e enfim cassado e preso – Imagem: Luca Bruno/AP e Marcello Paternostro/AFP

O herói dessa história tem o vezo determinante de comprar juízes desde o momento em que se ligou ao ex-premier socialista Bettino Craxi, que fugiu para a Tunísia em 1994, após ser condenado por corrupção no curso da Operação Mãos Limpas. Craxi desempenhou papel importante para a ascensão de Berlusconi, porque permitiu a venda de três canais de televisão ao grupo ­Fininvest, holding de mídia e de instituições financeiras erguida pelo magnata. Conclusão inescapável: foi o dinheiro mafioso a permitir que um delinquente como Berlusconi comandasse várias vezes a política italiana.

A polpuda contribuição da Cosa ­Nostra foi garantida pela presença, ao seu lado, de figuras abertamente ligadas à máfia siciliana, como Vittorio Mangano, oficialmente chamado para cuidar do haras da casa de campo de Berlusconi em ­Arcore, a 70 quilômetros de Milão. ­Trata-se de uma faustosa mansão, não menos imponente do que outra construída na Ilha da ­Sardenha, onde o ­ex-premier inaugurou o uso de bandana para esconder a calvície, mais tarde entregue a um implante indisfarçável, tingido de preto, para ostentar uma espécie de eterna juventude. Em seu terceiro casamento, tinha como esposa a deputada ­Marta Fascina, 24 anos mais jovem do que a sua filha primogênita, Marina Berlusconi, hoje a controlar o império da ­Fininvest, secundada por dois irmãos, sempre prontos a louvar as virtudes do pai.

Determinante na relação com a ­Cosa Nostra, o senador Marcelo Dell’Utri, fundador do partido Forza Italia com Berlusconi, teve o mandato cassado e foi preso por associação mafiosa, a exemplo de outros frequentadores da corte berlusconiana, entre eles o jornalista Emilio Fede.

A receita da eterna juventude graças à cirurgia plástica – Imagem: Alberto Pizzoli/AFP e Matteo Bazzi/Ansa/AFP

A ascensão de Berlusconi deu-se, sobretudo, por obra da Operação Mãos Limpas, que devastou o Partido Democrata Cristão, majoritário desde o início do pós-guerra e povoado por figuras hediondas. Um destaque é Giulio ­Andreotti, primeiro-ministro por três períodos. Secundado pelo então presidente da República, Francesco Cossiga, ele era um consumidor diário de hóstias e um dos grandes hipócritas da política europeia no século passado, aquele que nada fez para impedir a morte de Aldo Moro no cativeiro das Brigate Rosse e odiado pela família do líder da esquerda do PDC.

Andreotti foi ainda quem percebeu o peso político da máfia e certa vez foi pego a beijar o rosto de Totò Riina, insuspeito como mandante da morte do jornalista Carmine Pecorelli, conhecido como Mino, que insistia em contar as façanhas do chefe corleonesi. No contexto, falta outra figura deplorável: Bruno Vespa, até hoje presente no comando de um programa da tevê pública RAI. Na sua atuação melíflua, em proveito sempre das piores orientações, é um bajulador de todos, mas sobretudo de si mesmo.

O único mérito reconhecido de ­Berlusconi foi o de ter proibido o fumo em locais públicos. Fora isso, o vácuo e a empáfia. Como primeiro-ministro, ele também visitou o Brasil, onde se destacou pelas anedotas vulgares e a exigência da pole dance. Aliás, ao longo de sua trajetória política, tornou-se réu em mais de 30 processos, de corrupção à prostituição infantil, uma das facetas de suas famosas festas “bunga-bunga”. Evitou-as em Moscou, visitada para um encontro muito cordial com Vladimir Putin, outro a enviar condolências.

No Brasil, Berlusconi exigiu um “bunga-bunga”. Na URSS, ganhou amizade de Puttin – Imagem: Ricardo Stuckert/PR e Alexey Panov/AFP

Em conferências internacionais, ­Berlusconi deixou lembranças grotescas, como levantar os dedos indicador e mínimo, para simular cornos pelas costas do chanceler espanhol Josep ­Piqué, ou ainda gestos peremptórios para imitar as formas abundantes da senhora Angela Merkel, então premier da Alemanha. Trata-se de um conjunto assustador de micagens primitivas. Há quem diga que Donald Trump deu continuidade ao seu estilo, com o perdão, espera-se, do ex-presidente norte-americano.

Aficionado pelo Milan, que o inspirou ao escolher o nome de seu partido, ­Berlusconi não hesitou em despejar rios de dinheiro para tornar o clube vitorioso em várias Champions League. Chegou a erguer uma cidade, Milanello, nos arredores de Milão, para abrigar o centro de treinamento do time e famílias endinheiradas. O magnata investiu pesadamente na contratação de reforços importantes para manter o esquadrão milanês no topo do mundo, a exemplo do atacante George Weah, único africano a receber o troféu Bola de Ouro, ou o excepcional líbero Franco Baresi, que não esqueceram de enviar telegramas de condolências pela morte do ex-premier. Baresi, por sinal, chegou a visitar a ­câmara-ardente da mansão de Arcore. Felizmente, na visão desta publicação, não compareceu Paolo Maldini, provavelmente o melhor defensor italiano de todos os tempos. •

Publicado na edição n° 1264 de CartaCapital, em 21 de junho de 2023.

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