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Ela não se curva

Francesca Albanese, relatora da ONU para a Palestina, denuncia o genocídio na Faixa de Gaza e entra na mira do governo Trump

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Mordaça. Rubio defendeu as medidas contra Albanese, que nomeou as empresas que lucram com a limpeza étnica em curso no território ocupado – Imagem: Jure Makovec/AFP e Freddie Everett/Departamento de Estado/EUA
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A jurista italiana Francesca Albanese virou alvo da Casa Branca. Na quarta-feira 9, o governo Trump anunciou sanções contra a relatora especial da ONU para os territórios palestinos ocupados. Marco Rubio, secretário de Estado norte-americano, descreveu as medidas como uma ação contra “esforços ilegítimos e vergonhosos de induzir a ação da Corte Criminal Internacional contra oficiais, companhias e executivos dos EUA e Israel. A campanha de guerra política e econômica não mais será tolerada”. Todos os ativos de Albanese nos Estados Unidos estão congelados e ­suas viagens ao país estão proibidas.

O cargo de relator especial para os TPO foi instituído em fevereiro de 1993, em resposta às violações israelenses ao fim da Primeira Intifada, como mortes e ferimentos de civis pelo exército, restrições econômicas e demolição de casas. A posição é ocupada por um “especialista independente”. Albanese, que assumiu em maio de 2022, é a primeira mulher a ocupar o posto. Advogada de direitos humanos com mais de duas décadas de experiência em lei internacional e direitos humanos, a italiana passou quatro anos em Genebra como oficial do Escritório do Alto Comissariado para os Direitos Humanos e trabalhou na Agência de Assistência para Refugiados Palestinos em Jerusalém.

As sanções do governo Trump são uma retaliação à publicação, em 30 de junho, do estudo Da Economia de Ocupação para a Economia do Genocídio. O texto, organizado por Albanese, detalha a profundidade da participação de empresas e companhias israelenses e estrangeiras no massacre de palestinos. A relatora aponta a lógica central e desconfortável: a limpeza étnica continua em curso por ser “lucrativa para muitos”.

A lógica econômico-financeira que sustenta há quase dois anos as operações em Gaza e na Cisjordânia manifesta-se no orçamento de defesa israelense, que, depois de outubro de 2023, dobrou por conta de uma “rede internacional de corporações” que em tempos “de queda de ­demanda, produção e confiança do consumidor levantou a economia” do país. As gigantes de gestão de investimentos BlackRock e ­Vanguard são grandes investidoras em companhias implicadas no genocídio palestino. A ­BlackRock é a segunda maior investidora na Palantir (8,6%), Microsoft (7,8%), Amazon (6,6%) e a terceira maior na Lockheed Martin (7,2%). A Vanguard é a maior investidora na C­aterpillar (9,8%), fornecedora de máquinas para a demolição de casas, e a segunda maior na Lockheed Martin (9,2%) e na israelense Elbyt Systems (2%).

Outro artifício foi a emissão de títulos do Tesouro israelense, que “jogaram um papel crucial no financiamento da agressão a Gaza”. De acordo com o relatório, entre 2023 e 2024, o orçamento do exército israelense dobrou de 4,2% para 8,3% do PIB. Tel-Aviv financiou seu déficit por meio de emissão de ações: 8 bilhões de dólares em 2024 e 5 bilhões em 2025. Os maiores bancos, entre eles BNP Paribas­ e Barclays, deram o primeiro passo para adquirir parte dos títulos públicos e impulsionar a confiança nos mercados interno e externo. As firmas de administração de ativos juntaram 400 investidores de 36 países e, assim, Israel, desde outubro de 2023, triplicou a venda dos papéis.

A Casa Branca anunciou sanções econômicas contra a italiana

Rubio e Trump agiram não apenas para proteger os bancos, mas as big techs. A Microsoft, a Alphabet, controladora do Google, e a Amazon tornaram-se aliadas do republicano. Em outubro de 2023, o sistema de nuvem israelense sobrecarregou. Assim, a Microsoft, com a plataforma Azure, e o consórcio do Projeto Nimbus (Amazon, Google e Israel) proveram a infraestrutura de nuvem e Inteligência Artificial para sustentar o processamento de dados e as capacidades de análise e vigilância sobre milhares de palestinos. No campo de energia, Israel foi apoiado, principalmente, pela BP e pela Chevron, as maiores vendedoras de petróleo cru. A Petrobras, em 2024, enviou um carregamento suplementar ao país.

Na conclusão, Albanese sugere “impor sanções e embargo de armas” a Israel, “suspender ou prevenir todos os acordos de comércio e relações de investimento, e impor sanções, incluindo congelar ativos, sobre entidades e indivíduos envolvidos nas atividades que podem colocar os palestinos em perigo” e “impor responsabilidades a entidades corporativas” envolvidas em violações da lei internacional.

A italiana não é o primeiro alvo de Trump contra quem busca a responsabilização de Israel. O atual presidente estabeleceu o alicerce inicial da intimidação do sistema judicial internacional com a ordem executiva “Impondo Sanções sobre a Corte Criminal Internacional”. Naquele momento, lançava reprimendas contra o que considerava “ações sem base e ilegítimas tendo como alvo a América e nosso aliado próximo Israel”. Foram decretadas sanções contra o procurador do tribunal penal, Karim Khan, que havia emitido ordens, ainda vigentes, para a prisão do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e de Yoav Gallant, ex-ministro da Defesa. No começo de junho, as sanções alcançaram outros quatro juízes da Corte. As sanções dos EUA podem ser vistas como violações internacionais. A Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, adotada em 13 de fevereiro de 1946, da qual Washington é signatário, consagra a imunidade dos relatores especiais contra qualquer processo judicial. E as sanções impostas a Albanese se enquadram na definição de “processo judicial”.

A secretária-geral da Anistia Internacional, Agnès Callamard, saiu em defesa de Albanese. “Este é um ataque descarado e claro aos princípios fundamentais da justiça internacional”, afirmou. “Os relatores especiais não são nomeados para agradar a governos ou para serem populares, mas para cumprir o seu mandato. O mandato de Francesca ­Albanese é defender os direitos humanos e o direito internacional, essenciais num momento em que a própria sobrevivência dos palestinos na Faixa de Gaza ocupada está em risco.” Jürg Lauber, presidente do Conselho de Direitos Humanos da ONU, lamentou a decisão de Washington e apelou a todos os integrantes do sistema das Nações Unidas “para que cooperem plenamente com os relatores especiais e os titulares de mandatos do conselho e se abstenham de quaisquer atos de intimidação ou represália contra eles”.

Albanese, durante entrevista coletiva em Liubliana, na Eslovênia, desabafou: “Sou a primeira funcionária da ONU sob sanções impostas. Por ter exposto o genocídio? Por denunciar o sistema? Eles nunca me questionaram sobre os fatos que apresentei. Em vez disso, foram reclamar para a administração dos EUA. Isso mostra quem eles são. Eu vou continuar a fazer o que tenho de fazer. Sim, será desafiador. Sou apenas um ser humano. Mas, se eu posso fazer isso, todos podem fazer também. Juntos podemos aguentar essa pressão. E juntos podemos sair desse genocídio”. •

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ela não se curva’

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