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Efeito retardado

Dois anos depois, a política dos Estados Unidos ainda sofre as consequências da invasão do Capitólio

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No calcanhar. O relatório da comissão de investigação no Congresso aponta a culpa de Trump. Publicado em forma de livro, o texto virou best seller - Imagem: January 6th Committe/EUA
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É só drama”, suspirou Jaime Herrera Beutler na quarta-feira 4, enquanto a nova maioria republicana no Congresso dos Estados Unidos se atrapalhava repetidamente em sua primeira obrigação automática – foram 15 sessões para eleger um presidente. A própria Beutler não participou da impostura e da encenação. Por ter votado a favor do impeachment de Donald Trump após o motim no Capitólio em 6 de janeiro de 2021, ela perdeu sua chance de reeleição quando o ex-mandatário pressionou um de seus partidários a desafiá-la. O trumpista derrubou Beutler no segundo turno e depois perdeu para um democrata na eleição geral: Trump teve sua pequena vingança, pela qual os republicanos pagaram. Embora ele continue a criar drama, está sem capacidade de dirigi-lo, e assim o drama sem roteiro e absurdamente improvisado continua – cômico em curto prazo, mas, ao confundir o governo do ­país, provavelmente trágico a longo prazo.

Tudo começou quando Trump anunciou uma manifestação em 6 de janeiro de 2021 para impedir a certificação da vitória de Joe Biden. “Estejam lá”, gritou ele em um tuíte, “será uma loucura!” Seus partidários atenderam ao chamado, ávidos pelo que costumava ser chamado de “loucura”, o tipo de violência praticado pelas gangues juvenis. O republicano enviou seus seguidores para “lutar como o diabo” no Capitólio, onde espalharam fezes nos salões de mármore, detonaram bombas de fumaça e correram entre uma confusão de documentos saqueados, vidros quebrados e lascas de madeira. Trump também lhes deu um alvo para sua raiva: em um tuíte, ele se declarou decepcionado com seu vice-presidente, Mike Pence, que se recusou a derrubar o resultado eleitoral. Ao ser informado de que Pence corria o risco de ser linchado, Trump teria dado de ombros: “Talvez Mike mereça isso”.

A atual desordem em Washington é um epílogo atrasado daquela tarde ruinosa. Kevin McCarthy, que na noite de sexta-feira 6 passou pela 15ª votação por apenas quatro votos para ser eleito presidente da Câmara, liderou a minoria republicana em 2021. Assustado com as incursões da turba, ele disse em particular a colegas que estava “cheio” de Trump e, numa declaração pública no dia seguinte, o acusou de incitar uma insurreição. ­Duas semanas depois, de rabo entre as pernas, viajou à Flórida para pedir perdão. McCarthy primeiro enfureceu os republicanos de direita ao denunciar Trump, depois enojou os centristas ao se desculpar covardemente. Suas esperanças de avanço foram impedidas por seus próprios recuos escorregadios.

O relatório do comitê seleto que investigou o ataque ao Capitólio documenta minuciosamente os primeiros estágios desse colapso em disfunção e autodestruição. “O dia 6 de janeiro será épico”, previu um líder da milícia Proud Boys. O relatório de 850 páginas certamente é e, em meia dúzia de edições diferentes, tornou-se uma espécie de sucesso editorial. Mesmo antes de seu lançamento, duas semanas atrás, as encomendas antecipadas o tornaram o best seller da Amazon. Com sorte, isso pode assustar os norte-americanos e fazê-los reconhecer o quão instável é o seu sistema político – ou eles o consumirão como docudrama, o fim da democracia como um thriller fácil de Tom Clancy?

A atual desordem em Washington é um epílogo atrasado daquela tarde ruinosa

Em sua introdução, Liz Cheney toma cuidado para não acusar os manifestantes. Argumenta que Trump se valeu de seu zelo patriótico. Ele certamente lucrou com a credulidade deles e os induziu a doar 250 milhões de dólares para financiar sua “grande mentira” – mas também foi criação deles, obrigados a realizar suas fantasias. Trump disse aos seus apoiadores que sua missão era salvar o país, mas foi impedido pelo serviço secreto de se juntar à marcha pela Avenida Pensilvânia. Então se retirou para a sala de jantar da Casa Branca, onde assistiu ao caos pela Fox News.

Embora se preocupasse com o fato de seus apoiadores parecerem um pouco “inúteis”, Trump adorava a ideia de que estavam preparados para morrer por ele. O relatório deixa claro o quão assustadoramente militarizados eles eram: juntamente com os inevitáveis rifles de assalto, também estavam armados com tesouras, agulhas, soqueiras, arcos e flechas, ingredientes para coquetéis Molotov, facões, machadinhas e mastros de bandeiras reaproveitados como aríetes ou porretes.

Alguns acreditavam ser a guarda avançada de uma convulsão histórica. Um grupo tagarelava sobre a tomada da Bastilha. Para outros, o precedente foi o ataque bolchevique ao Palácio de Inverno. Uma facção cujo grito de guerra era “1776” via o motim como uma reprise da batalha de George Washington contra a monarquia imperial britânica. A história importava menos para os muitos trogloditas na multidão, um dos quais grunhiu: “Vamos foder alguma merda” (sic), enquanto outro jurou tirar a então presidente da Câmara, Nancy Pelosi, do Capitólio e garantir que sua cabeça batesse em todos os degraus de pedra na descida.

Fonte de inspiração. Os eventos de 6 de janeiro de 2021 em Washington acabaram macaqueados no Brasil. Lá, as punições tem sido exemplares – Imagem: Mostafa Bassim/Anadolu Agency/AFP, Agnes Bun/AFP, Saul Loeb/AFP e Tayfun Coskun/Anadolu Agency/AFP

Washington DC, tão orgulhosa de seus santuários democráticos neoclássicos brancos, foi rebatizada de Fort Trump, cidade sem lei na fronteira, onde os liberais seriam “arrastados pelas ruas” por vigilantes caubóis. Antes do grande dia, informações úteis circulavam online sobre como erguer a forca e fazer corretamente o nó do carrasco. Os neonazistas que se juntaram à farra tinham um roteiro ainda pior em mente. Um deles usava um moletom com o slogan Camp Auschwitz e um camarada – hoje, é bom saber, na prisão em New Jersey – orgulhosamente exibia sua rala homenagem ao bigode de Hitler.

Enquanto a multidão abria caminho para o Capitólio, o fabulista do InfoWars, Alex Jones, balbuciava por um megafone sobre um confronto apocalíptico entre o Bem e o Mal. Mas os marionetistas que planejaram a tentativa de golpe viam tudo com distanciamento irônico e imaginavam que poderiam fazer sua manipulação a uma distância segura. O relatório cita um gerente de campanha que falou sobre a necessidade de “motivar” o apoio para manter Trump na Casa Branca, o que significava intimidar os legisladores estaduais para ignorar os votos dados a Biden. O demagogo do Breitbart, Steve Bannon, pediu a Trump para “fornecer o motor da narrativa sobre como vamos avançar”: narrativa aqui significava ficção, impulsionada industrialmente.

No fim da tarde, Trump saiu do isolamento, penteou o cabelo, retocou a maquiagem laranja e recitou uma mensagem de televisão impenitente, na qual conclamou a multidão para ir para casa em paz. O golpe havia falhado, mas ele assegurou aos fanáticos que os “amava” e ordenou solenemente: “Lembrem-se deste dia para sempre”. Ele, provavelmente, esperava que 6 de janeiro fosse comemorado como uma data festiva. Em vez disso, tornou-se o trauma da América, cena primordial na qual a fragilidade das instituições do país foi exposta. E, como a multidão que ele convocou tinha seu próprio ímpeto irrefreável, também alertou Trump sobre sua crescente irrelevância. Sempre um oportunista habilidoso, conseguiu ser eleito ao explorar as queixas populares pelas quais não tinha nenhuma simpatia genuína. O que ele chamou de “o maior movimento da história do nosso país” agora segue sem ele.

Em novembro, até o programa de Sean Hannity na Fox cortou o anúncio nervoso de Trump de sua terceira corrida presidencial. O ex-presidente instou os republicanos a capitalizar sua “grande vitória” – na verdade, um fiasco, pelo qual sua própria intromissão nas eleições de meio de mandato foi culpada – e “fazer (um) acordo” para instalar McCarthy. Suas súplicas foram ignoradas.

Em um Congresso que historicamente levou muito tempo para eleger um presidente, o processo que Trump instigou caminha para um beco sem saída. Durante o impasse de uma semana, enquanto a maioria republicana lutava entre si, o governo foi incapaz de funcionar, embora na verdade talvez não tenha interesse em ser monotonamente funcional. Para os herdeiros de Trump, a política é drama, e o exercício do poder consiste em se apresentar para as câmeras. Entre as votações inconclusivas dos oradores, vários republicanos proclamaram com valentia que tudo estava como planejado. Um deputado, ao nomear McCarthy para a quarta votação, disse que “o povo americano está no comando” e exclamou “como temos sorte por sermos cidadãos do maior país da história do mundo”.

Hoje, com os republicanos de volta ao poder na Câmara, o país tem inimigos inteiramente locais

Um colega que apresentou um candidato rival disse “estamos fazendo história aqui” – sim, mas do tipo errado, pois a última vez que tal impasse ridículo ocorreu foi em 1923. O Departamento de Estado até se sentiu compelido a encobrir o constrangimento do país, anunciando que as disputas nos bastidores e a esquálida troca de favores mostravam ao mundo como era a democracia quando funciona com afinco.

Alexandria Ocasio-Cortez foi mais sincera depois de ser pega numa confusão com os republicanos Matt Gaetz e Paul Gosar, um improvável par de confederados para esta democrata incendiária: Gaetz foi acusado de tráfico sexual pelas fronteiras estaduais e Gosar uma vez tuitou um vídeo que o mostrava cortando a garganta de ­Ocasio-Cortez com uma espada. Ela explicou que os três discutiam as regras para o adiamento de uma sessão do Congresso. “No caos”, ela acrescentou com entusiasmo, “tudo é possível.”

Mike Fanone, ex-policial, também parecia se divertir. Durante o ataque ao Capitólio, os manifestantes o espancaram com canos, o atordoaram com uma pistola Taser e ameaçaram atirar nele com sua própria arma. Ele sofreu um ataque cardíaco, queimaduras e lesões cerebrais traumáticas, mas conseguiu um contrato para um livro e uma aparição na CNN por suas dores. Ao saber que McCarthy se instalava prematuramente no gabinete do presidente, Fanone fez uma visita de cortesia – apenas, como ele disse, “para esfregar na cara”.

Ocasio-Cortez e Fanone podem viver para se arrepender de terem sofrido desse estado de feliz anarquia. Naquele 6 de janeiro, a ex-assessora da Casa Branca ­Hope Hicks protestou que a cumplicidade­ de Trump significava que “todos nós parecemos terroristas domésticos agora”. Ela foi mais presciente do que se poderia imaginar: hoje, com os republicanos de volta ao poder, o país tem inimigos inteiramente locais e que afirmam abertamente seu patriotismo. A cabala que sabotou McCarthy é conhecida como Taliban 20. Outros republicanos os chamaram de sequestradores. “Vamos para a guerra”, informou um dos estrategistas de ­McCarthy à CNN, aparentemente sem saber que liderava um ataque contra seu próprio lado. Biden sentiu-se obrigado a lembrar aos legisladores que “estes são os Estados Unidos da América”. Falava com seriedade, mas parecia uma piada.

Quando Pence retomou a confirmação cerimonial da vitória de Biden na noite de 6 de janeiro, dois anos atrás, ele insistiu com sua habitual devoção bajuladora que “a Presidência pertence ao povo americano”. Foi sua repreensão a Trump, que pensava no cargo como um brinquedo particular. Quem são esses frequentemente invocados? Em 6 de janeiro de 2021, os norte-americanos em questão eram cristãos brancos nacionalistas, a atacar e a clamar por sangue. Pobres dos populistas no dia em que o povão realmente prestar atenção neles. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Efeito retardado “

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