Mundo
É genocídio
Comissão independente da ONU não mede as palavras para classificar a operação militar de Israel


Na terça-feira 16, em uma manifestação inédita e histórica, a Comissão de Investigação Internacional Independente da ONU deu nomes aos bois. Os especialistas, após meses de análises, concluíram que a operação militar de Israel na Faixa de Gaza constitui-se em um típico caso de genocídio. Os relatos são chocantes. Além dos casos de crianças com tiros no crânio, os investigadores enumeram acusações de estupro e assédio sistemáticos cometidos por soldados israelenses e da estratégia de sitiar a população. “Isso torna a região única entre as zonas de guerra deste século”, descreve um trecho. “Há uma clara intenção, por parte das autoridades israelenses, de encurralar os palestinos, criando condições que os impeça de fugir e que, em última instância, levem à sua destruição.”
O documento reverberou entre os ativistas de direitos humanos. No dia seguinte à divulgação do relatório, líderes de 22 organizações sociais, entre elas Médicos Sem Fronteiras, Oxfam Internacional e Save the Children Internacional, pediram uma intervenção “urgente” de líderes internacionais para interromper a limpeza étnica atestada pelos especialistas da ONU. A partir dos crimes identificados, o estudo faz recomendações aos Estados filiados às Nações Unidas, a começar pela interrupção de envio de armas para Israel e punições a empresas e indivíduos desses países direta ou indiretamente envolvidos no massacre.
O ataque israelense a prédios em Doha, capital do Catar, supostamente para eliminar integrantes do Hamas, também provocou reações. Na segunda-feira 15, o conjunto de países árabes e islâmicos reuniu-se na cidade atingida para uma conferência de emergência. No documento final do encontro, que contou com a participação da Arábia Saudita e da Turquia, os participantes delinearam uma “Visão Compartilhada para Segurança e Cooperação na Região”. Apesar de citar a necessidade da retirada de Israel dos territórios ocupados, a carta é antes de tudo uma súplica para os Estados Unidos barrarem os ataques a aliados.
Um dos poucos governos ocidentais a tomar atitude foi, no entanto, o da Espanha. O primeiro-ministro Pedro Sánchez, outra figura pública internacional acusada de “antissemitismo” pelo gabinete de Benjamin Netanyahu, anunciou o cancelamento de um contrato de 700 milhões de euros, cerca de 4,5 bilhões de reais, para a compra de um sistema de artilharia da empresa israelense Elbit. Foi o segundo contrato cancelado pelo governo espanhol em setembro, em um total de 1 bilhão de euros, perto de 6 bilhões de reais.
Apoiado de forma incondicional por Trump, Netanyahu ignora as pressões. Diante da tendência da ONU de reconhecer o Estado palestino, o premier israelense afirmou que a medida é “inaceitável” e nunca entrará em vigor. Na segunda-feira 15, as tropas israelitas avançaram na destruição e desocupação definitiva do enclave. Os bombardeios na região norte, segundo relatos, duraram cerca de cinco horas. Além das mortes, o exército tem demolido os prédios mais altos da Cidade de Gaza, entre eles o Hotel Al-Mushtal. A jornalista Hebj Jamal descreveu a situação: “A cidade está sendo apagada enquanto digito. Não há quase jornalistas aqui para cobrir o que ocorre. A Nakba em massa de milhares de palestinos acontece enquanto falo, e não temos ideia de quantos foram mortos ou feridos durante a campanha de aniquilação de Israel com o objetivo de ocupar e limpar etnicamente o território. Horror”.
Mohammad Hamad, trabalhador da área de saúde, também se manifestou: “Milhares de famílias estão deslocadas, hospitais estão transbordando com feridos e crianças ficam apavoradas”. Muhammad Shehada, analista político, reportou o caos. “O exército invadiu no meio da noite com tanques e tem explodido veículos blindados robóticos em bairros densamente povoados para assustar os moradores e obrigá-los a fugir.”
O enclave tornou-se “único entre as zonas de guerra” do século, afirma o documento
Inerente ao genocídio é a própria negação do fenômeno. Segundo o pesquisador e arquiteto israelense Eyal Weizman, diretor da Forensic Architecture, um e outro se complementam no processo de extermínio. “Essa negação não é um artifício retórico, mas opera no campo da política, no chão de operações militares, nos ataques a jornalistas e defensores de direitos humanos.”
O governo israelense, logo após a divulgação do relatório, colocou em movimento a máquina de negação. Na conta do Ministério das Relações Exteriores na rede X lê-se: “Os autores, ‘três indivíduos servindo como proxies do Hamas, notório por seu antissemitismo’ (…) lançaram mais um relatório ‘fake’ hoje”. O ministério repete as justificativas oficiais para a invasão de Gaza: exercer sua autodefesa, neutralizar o Hamas e assegurar a libertação dos reféns capturados. A comissão concluiu, no entanto, que “ações e consequências indicavam outras motivações, incluindo vingança e punição coletiva”.
Os autores se utilizaram, para tanto, dos “padrões de conduta”. Ou seja, aliados a declarações de intenção de extermínio, os padrões de conduta permitiriam a conexão entre decisões centrais de políticos e as operações em campo, denotando os reais objetivos israelenses. A comissão enumera, entre outras, a conexão de leis aprovadas no Parlamento israelense em outubro de 2024, para impedir as operações da UNRWA (agência de assistência social a refugiados), com o estabelecimento, em 2025, do GHF (Fundo Humanitário de Gaza), organização administrada pelos EUA e por Israel para distribuir alimentos, na proximidade das quais, até meados de outubro, cerca de 2 mil civis foram mortos. “Ambos representam medidas políticas interconectadas tomadas pelas autoridades israelenses para bloquear e obstruir agências de ajuda confiáveis e manter o completo domínio israelense sobre o acesso dos palestinos à ajuda essencial e vital, o que leva à destruição física.”
Outro ponto importante é o extermínio proposital de crianças. Do total de 60,2 mil mortos entre 7 de outubro de 2023 e 31 de julho deste ano, 18,4 mil eram menores de idade. A comissão descobriu que “crianças foram diretamente atingidas de várias formas por forças de segurança, incluindo durante evacuações, em abrigos e, mais recentemente, nos locais de distribuição do GHF”. O documento inclui o testemunho de profissionais de saúde, que informaram que trataram crianças com ferimentos diretos de tiros de snipers, com frequência na cabeça e no abdome, indicando que as forças de segurança intencionalmente alvejaram menores durante as operações militares. Genocídio, concluiu a comissão. Há outro termo para definir o que se passa em Gaza? •
Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘É genocídio’
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