Mundo
Duelo no Altiplano
A crise econômica aprofunda a disputa entre o ex-presidente Evo Morales e o atual, Luís Arce


A canhestra tentativa de golpe de Estado, em 16 de junho, liderada pelo general Juan José Zuñiga, então comandante-geral do Exército, ainda ressoa na base do MAS, partido dominante na política boliviana. A quartelada, mal concebida e mal explicada, dissolvida em poucas horas, aumentou o fosso entre os dois principais líderes da legenda, o ex-presidente Evo Morales e seu pupilo e atual mandatário, Luís Arce. O que antes era uma briga intestina transformou-se em uma guerra aberta pelo controle do movimento e do futuro da nação. Fascistas, golpistas, corruptos são alguns dos epítetos nada edificantes trocados entre os apoiadores de Morales e Arce. O ex-presidente está em campanha aberta para as eleições presidenciais, marcadas para agosto do próximo ano, considera o golpe uma fraude armada pelo sucessor e tem pressionado o antigo aliado com marchas país afora, nas quais exige uma reforma ministerial e o combate aos problemas do país, a começar pela escassez de divisas e a falta de combustível.
A cizânia nos movimentos sociais, Parlamento e entidades representativas se reproduz nas famílias e entre amigos. Antigos companheiros de militância, o jornalista Gabriel Rodríguez e o advogado Christian Rojas participaram juntos de campanhas presidenciais tanto de Morales quanto de Arce e interpretam de forma completamente diferente o momento atual.
“Entre os 21 senadores, existe uma bancada leal a Evo, mas a maioria dos 75 deputados está com o presidente, que se aliou à direita e à embaixada norte-americana. Integrantes do alto escalão promovem campanhas midiáticas sujas para ameaçar e incriminar adversários, além de controlar a polícia e a Justiça. A maior prova é a prorrogação do mandato de juízes, que deveriam ser eleitos por voto popular a cada seis anos e estão indevidamente mantidos nos cargos”, critica Rojas. “A aprovação do mandato na média das pesquisas é de 30% em razão do desgaste promovido pela direita e pelo evismo, que toma o processo revolucionário como uma ação unipessoal, razão pela qual tem perdido força. É preciso compreender que o sujeito indígena não tem mais uma inclinação totalmente a favor das esquerdas. Nas últimas duas décadas se geraram novas burguesias, inclusive nos movimentos, com aderência a projetos conservadores da classe média e alta”, rebate Rodríguez.
No horizonte, as eleições presidenciais do próximo ano
A repercussão da disputa interna, descreve a doutora em Sociologia Claudia Cuellar Suárez, alcança vários setores da sociedade. “Os custos da crise são vividos pela população, que enfrenta aumento de preços e carência de alguns produtos, inclusive alimentares. Nas ruas há uma crescente violência política masculinizada. Além disso, vivemos décadas de um extrativismo agressivo do ponto de vista mineiro, petroleiro, florestal e agroindustrial, cuja devastação atinge níveis recordes. Essa agenda é compartilhada por Arce e Evo.” A exemplo do Brasil, a Bolívia sofre com queimadas em níveis recordes em muitas partes do território. Segundo o Observatório Regional Amazônico, os dois países perderam meio milhão de hectares de selva nativa nos últimos cinco anos. A degradação atinge outros biomas, especialmente na região oriental do país, e afeta diretamente comunidades originárias e agricultores. No fim de setembro, o governo decretou estado de emergência por causa do “maior desastre ambiental da história”. Arce também pediu apoio internacional para combater os incêndios.
A economia e o gás são os focos das desavenças. Arce não repete os bons resultados da época como ministro da Economia, quando a Bolívia se destacava pelo controle da inflação e por altas taxas de crescimento do PIB. Para tornar mais complexa a situação, o país rico em gás natural e lítio e projetado como potência energética convive com a escassez de gasolina e diesel em algumas regiões. “Faltam dólares para pagar aos fornecedores. Quando os pagamentos são realizados, as cidades mais importantes, La Paz, Santa Cruz e Cochabamba, são abastecidas, mas o restante sente mais”, descreve a pequena empresária Cristina Sirpa. Apesar dos problemas, em seu restaurante na capital é possível almoçar por 11 bolivianos, cerca de 8,50 reais. A cotação da moeda permanece estável e os programas sociais inspirados na experiência brasileira protegem a população mais vulnerável. “As políticas estatais seguem de alguma forma, mas se desviaram para uma minoria e têm sido negligenciadas. Nos hospitais públicos, há carência de profissionais, o que retarda os atendimentos”, diz um médico de Santa Cruz que pediu anonimato.
Segundo o deputado Miguel Roca, do Comunidade Cidadã, a crise revela o esgotamento de um modelo de governança. “Arce não contou com a hegemonia experimentada por Evo em sua época e foi incapaz de construir consensos. Quase 9 de cada 10 trabalhadores são informais, portanto, esses setores populares são por essência liberais e não acreditam em lógicas coletivistas ou socialistas. Defendem a liberdade individual e econômica e ainda buscam uma representação, que ainda não tem cara nem nome, mas tem um perfil claro.”
Não se sabe se Morales estará ou não autorizado a concorrer a mais um mandato presidencial no próximo ano. Uma decisão de 2023 do Tribunal Constitucional impede o ex-presidente de concorrer – e seus aliados acusam Arce de ser um dos responsáveis pelo veto. A decisão revogou quatro anos depois a licença do líder indígena de disputar, uma das causas do golpe policial-militar que o tirou do poder em 2019 e o obrigou a se exilar no México até a vitória do então aliado Arce um ano depois. Quando a sentença do tribunal foi anunciada, Morales acusou o governo de participar do conluio. “É uma prova da cumplicidade de alguns juízes com o ‘plano negro’ que o governo executa por ordens do império e com a conspiração da direita boliviana.” Como tem sido comum na história política sul-americana, a criatura volta-se contra o criador. No Altiplano boliviano, até agora, o desejo de Pacha Mama permanece insondável. •
Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Duelo no Altiplano’
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