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Donald Trump desclassificado

A batida fora do comum do FBI foi uma resposta ao comportamento sem padrão do ex-presidente

Donald Trump desclassificado
Donald Trump desclassificado
Surrupio. A busca e apreensão no resort de Trump na Flórida encontrou documentos confidenciais retirados da Casa Branca. O republicano negava a posse dos papéis - Imagem: Mandel Ngan/AFP e Departamento de Justiça/EUA
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A foto dos documentos diz tudo. Há uma superabundância de carpetes em Mar-a-Lago, o resort de Donald Trump na Flórida, com seu elaborado design floral supostamente destinado a indicar bom gosto e luxo, mas que sinaliza apenas excesso. Há a vulgaridade das molduras douradas baratas enfiadas numa caixa à direita na foto, um eco da película brilhante que emplastra toda a Trump Tower em ­Manhattan. Na primeira moldura, o ego do proprietário ressoa – é uma capa da revista Time de 2019, com os desafiantes presidenciais democratas de Trump, entre os quais Joe Biden, a olhar invejosamente para ele sentado no Salão Oval. Depois há as coisas que realmente importam: as seis pastas de documentos espalhadas pelo chão marcadas “Secret/SCI” ou “Top Secret/SCI”. Imediatamente, os papéis conduzem o observador para uma direção muito diferente: essa imagem não é sobre excesso, cafonice ou ego. Trata-se de sigilo, perigo, ilegalidade.

A foto pode ser encontrada anexada ao processo judicial de 36 páginas divulgado pelo Departamento de Justiça na terça-feira 30, em sua batalha com Trump por registros confidenciais. O Anexo F exibe alguns dos documentos confidenciais que o FBI descobriu durante sua busca muito contestada em Mar-a-Lago­ no início do mês. A imagem resume não apenas o desdém de Trump por normas e leis democráticas, mas o crescente perigo legal que agora se aproxima dele. É cuidadosamente composta e permite ao observador ver apenas detalhes legíveis suficientes para tirar conclusões.

Lá está um documento carimbado em 9 de maio de 2018, um dia depois de Trump anunciar que havia retirado os Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã, como observou a agência de notícias Bloomberg. Há outro documento da Casa Branca marcado como “Secreto, Acesso Limitado”, datado de 26 de agosto de 2018. Foi posto em sigilo pelo fato de um dia depois o inimigo de Trump, o senador John McCain, morrer? Ou havia alguma outra razão para explicar sua designação “NOFORN”? – sigla em inglês para “não deve ser visto por nenhum estrangeiro”.

Entre os documentos apreendidos havia papéis Top Secret e com potencial de expor espiões dos EUA

Trump tentou menosprezar a importância da fotografia. “Terrível a maneira como o FBI espalhou documentos por todo o chão (talvez fingindo que eu fiz isso)”, fulminou em sua rede Truth Social. Mas seu tom irreverente e desdenhoso, sua marca registrada, talvez não seja suficiente nesta ocasião. Não depois da sexta-feira 2, quando o inventário mais detalhado dos materiais apreendidos em Mar-a-Lago foi aberto, com 103 documentos classificados como sigilosos, entre eles 13 marcados como “Top Secret”, além de 90 pastas classificadas ou marcadas para devolução ao secretário da Casa Branca ou a um assessor militar, mas que estavam misteriosamente vazias. E não quando outro documento contém as quatro letras devastadoras: ­HCS-P. Isso significa que há informações coletadas de fontes humanas clandestinas, geralmente espiões ou informantes sob disfarce. Tal “Humint” deve ser excepcionalmente guardada para a segurança da própria população norte-americana.

Essa era a mensagem que o Departamento de Justiça queria transmitir ao divulgar a foto: o tempo da frivolidade terminou. “Agora sabemos que algumas das informações recuperadas foram rotuladas de maneira que poderiam indicar que provinham de fontes humanas confidenciais”, disse Andrew McCabe, ex-vice-diretor do FBI de Barack Obama e de Trump. “Há uma chance de as informações terem sido coletadas de gente que trabalha em nome dos Estados Unidos no exterior, incluídas fontes da CIA. Você está literalmente falando sobre a vida deles.”

Em 8 de agosto, quando dezenas de agentes do FBI se espalharam por Mar-a-Lago com um mandado de busca emitido por um juiz federal, Trump atacou. “Estes são tempos sombrios para a nossa nação”, disse, depois de descrever a busca legalmente autorizada como uma “batida” e retratá-la como um ataque descaradamente político, parecido com um desses “países quebrados do Terceiro Mundo”. Ele acrescentou: “Nada desse tipo aconteceu antes com um presidente dos Estados Unidos”. Excepcionalmente para Trump, essa última afirmação estava correta. Nunca um presidente norte-americano foi submetido a uma busca involuntária em sua casa por agentes federais à procura de provas em uma investigação criminal.

Gado em inglês. Os apoiadores de Trump se concentraram na portaria do resort para protestar contra os “abusos” – Imagem: Giorgio Vieira/AFP

Nas últimas quatro semanas, foi divulgada uma série de informações que contam o outro lado da história. Acontece que a natureza sem precedentes da busca do FBI foi motivada pelo comportamento ainda mais sem precedentes do 45º presidente dos Estados Unidos. Trump tem sido contestado sobre arquivos há muitos anos. As raízes de sua recusa em cumprir as regras normais relacionadas a documentos remontam pelo menos à sua recusa em divulgar suas próprias declarações de impostos durante a campanha presidencial de 2016, uma resistência a aceitar o acesso do público a seus papéis pessoais é a imagem espelhada de sua afirmação ­atual de que os registros presidenciais de seu tempo na Casa Branca pertencem a ele.

Ruth Ben-Ghiat, professora de ­História na Universidade de Nova York, autora de Strongmen: Mussolini to the ­Present (Homens Fortes: de Mussolini ao Presente) e editora do boletim Lucid sobre ameaças à democracia, diz que essa confusão entre público e privado é central para o estilo autocrático de liderança do republicano. “Para Trump, os registros não são apenas documentos. São uma medida de controle, alavancagem sobre os inimigos e sobre seu círculo íntimo. Esse tipo de líder não reconhece a divisão entre público e privado. Eles têm um modo de exercer o poder em que tudo é deles.”

Em junho de 2018, esse comportamento se expressava na Casa Branca. O site Politico informou que Trump rotineiramente rasgava registros oficiais, em vez de arquivá-los para custódia nos Arquivos Nacionais, como era legalmente obrigado a fazer. Os assessores da Casa Branca ficavam desesperados ao tentar juntar os documentos de volta, uma vinheta ridícula do governo na era Trump. Depois de ter sido forçado a sair da Casa Branca, muitos papéis presidenciais foram recebidos pelos arquivos em condições igualmente rasgadas.

Ruth Ben-Ghiat, da Universidade de Nova York: “Trump confunde o público com o privado”

Documentos que não foram rasgados eram frequentemente acumulados. ­Stephanie Grisham, assessora sênior da Casa Branca, descreveu o padrão para o jornal The Washington Post. No fim de cada dia, as caixas eram levadas para o andar de cima até a residência da Casa Branca. “Elas eram entregues à residência e simplesmente desapareciam.” Grisham deu uma visão memorável da estrutura caótica da mente de Trump, representada em forma física pelo conteúdo das caixas. “Não havia rima ou razão. Eram documentos sigilosos em cima de jornais, em cima de papéis que as pessoas imprimiam com coisas que queriam que ele lesse. Esse era o nosso sistema de arquivamento.”

Desde a busca em Mar-a-Lago, Trump alegou inocência e agiu como o colegial que murmura negações, enquanto chupa descaradamente um pirulito roubado. “Eles poderiam tê-los a qualquer hora que quisessem – inclusive MUITO tempo atrás. TUDO O QUE PRECISAVAM FAZER ERA PEDIR”, vociferou. No mês passado, ficou bastante claro, no entanto, que os arquivistas pediram, repetidas vezes. Eles começaram a pedir caixas de documentos, de fato, antes mesmo de Trump deixar a Casa Branca, e continuaram a fazê-lo ao longo de 2021. Em 18 de janeiro deste ano, Trump finalmente devolveu 15 caixas de Mar-a-Lago. Assim como o conteúdo confuso descrito por Grisham, elas continham uma mistura de recortes de jornais, notas manuscritas, memorandos, menus de jantar, cartas, um guardanapo de coquetel, papéis informativos, o equivalente em arquivo a um bazar de objetos de segunda mão. Também continham registros que confirmavam os piores temores dos arquivistas. Misturados aos cacarecos havia 184 documentos classificados, 25 deles marcados como “Top Secret” e vários com o arrepiante selo de inteligência humana HCS.

Violação. Os últimos dias de Trump na Casa Branca foram de “queima de arquivos” – Imagem: iStockphoto

Não terminou aí. Investigadores federais chamados para pesquisar o assunto ficaram convencidos de que Trump ainda escondia coisas. Uma intimação emitida pelo júri em maio exigia a devolução de qualquer documento sigiloso, e em 3 de junho três agentes do FBI e um funcionário do Departamento de Justiça visitaram Mar-a-Lago para apreender mais 38 documentos classificados, incluídos 17 marcados como “Top Secret”, que Trump afirmou ter acabado de descobrir. Durante essa visita, um advogado do ex-presidente assinou uma declaração juramentada que dizia, com autorização pessoal do cliente, que “uma busca diligente” havia sido realizada em todas as caixas trazidas da Casa Branca. “Todos e quaisquer” dos documentos que foram objeto da intimação foram entregues e não havia “outros registros armazenados em qualquer espaço de escritório particular ou outro local”.

O FBI continuou desconfiado. Talvez porque, quando levados para dar uma olhada no depósito em Mar-a-Lago,­ os agentes tenham sido explicitamente proibidos de abrir ou olhar dentro de qualquer uma das caixas da Casa Branca. Talvez as imagens de vigilância capturadas do lado de fora da sala de armazenamento, que o FBI obteve sob uma intimação separada, tenham mostrado funcionários no espaço que deveria ter sido protegido. Ou talvez fosse porque o Departamento de Justiça tinha uma rica rede de informantes em Mar-a-Lago. Os promotores sugeriram fortemente que sim ao se referir a “um número significativo de testemunhas civis” cujas identidades precisavam ser protegidas.

Isso, por sua vez, pode explicar o motivo de o Departamento de Justiça ter chegado ao fim de suas forças e no mais alto nível – o do secretário de Justiça, ­Merrick Garland – decidiu autorizar a busca em Mar-a-Lago. Se o governo dos Estados Unidos podia extrair com tanta facilidade informações privilegiadas do santuário de Trump, o que impedia os governos estrangeiros de fazer o mesmo? “Mar-a-Lago não é a casa de Donald, é um clube social”, disse Michael Cohen, que, como advogado de Trump até 2018, quando se declarou culpado de evasão fiscal e outras infrações, sabe do que fala. “São milhares de sócios e, juntamente com seus convidados, entram e saem do local à vontade. As instalações não são seguras e não há lugar para documentos ultrassecretos.” McCabe, o ex-vice-diretor do FBI, também sabe: “Mar-a-Lago é o sonho de um espião. É um lugar público, fácil de entrar. Um oficial de inteligência determinado e treinado poderia entrar e, provavelmente, conseguir uma audiência com o ex-presidente que teve acesso aos segredos mais sensíveis que temos”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Donald Trump desclassificado “

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