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Disputa pela Groenlândia é a nova batalha colonialista entre potências

A competição estratégica e o impacto que toda essa atividade terá na crise climática sugerem que a ‘luta pelo Ártico’ só pode terminar mal

Tudo por dinheiro. Trump não está interessado no cenário natalino. A Groenlândia é estratégica no Polo Norte
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A tentativa do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de comprar a Groenlândia e a franca resposta da primeira-ministra da Dinamarca provocaram risos. Mas foram principalmente risos nervosos. A intervenção dos EUA projetou uma luz fria sobre uma crise em rápido avanço, porém negligenciada, no topo do mundo – a pilhagem do Ártico.

Como a “luta pela África” no fim do século XIX, quando os impérios europeus expandiram o controle colonial na massa terrestre do continente de 10% para 90% em 40 anos, a região do Ártico está em disputa. Assim como naquele caso, a batalha por vantagens é nacionalista, perigosamente desregulamentada e prejudicial aos povos nativos e ao meio ambiente.

Até relativamente pouco tempo atrás, os oito países do Ártico – Canadá, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega, Suécia, Rússia e Estados Unidos – mantinham um amplo consenso em favor da cooperação pacífica. Disputas como a existente entre o Canadá e os EUA sobre a Passagem Noroeste e a alegação da Rússia de que a cadeia subaquática Lomonosov se estende até o Polo Norte eram consideradas, literalmente, conflitos congelados.

 

Então vieram a crise climática e o aquecimento global – e a percepção crescente de que os vastos recursos quase inexplorados do Ártico começavam a se tornar mais acessíveis. Acredita-se que a região contenha cerca de 13% das reservas de petróleo não descobertas do mundo e 30% das reservas de gás natural, além de enormes depósitos de minérios como zinco, ferro e metais de terras raras.

O derretimento do gelo significa que as passagens marítimas de longa distância, como a Rota do Mar do Norte, que vai do leste da Sibéria ao Atlântico Norte, são cada vez mais navegáveis. Levar um navio porta-contêineres da China ao Norte da Europa por ela pode reduzir em dez dias o tempo da viagem pelo Oceano Índico e pelo Canal de Suez.

Com a região se aquecendo mais que o dobro da média global, há uma crescente dimensão militar e estratégica. A Rússia, maior nação do Ártico em termos geográficos, constrói novas instalações militares e usinas de energia. Um relatório do Pentágono em junho enfatizou a necessidade de manter as “vantagens militares competitivas” dos EUA. A China também participa da ação no Ártico.

Em outras palavras, em vez de enfrentarem juntos uma emergência com implicações globais existenciais, os principais atores parecem empenhados em transformá-la em vantagem nacional – e agravá-la nesse processo. A aposta de Trump na Groenlândia, de olho em mineração e bases militares, simbolizou essa mentalidade subjetiva.

Para piorar a situação, a intensificação da concorrência dá-se em grande parte sem regras. 

De acordo com o direito internacional, o Polo Norte e o Oceano Ártico ao seu redor não pertencem a nenhum país. Mas todos os Estados costeiros têm zonas econômicas exclusivas de 200 milhas náuticas. Eles também mantêm reivindicações sobrepostas aos recursos da plataforma continental estendida.

O aquecimento global aumenta as chances de exploração econômica do Ártico, onde estão 13% das novas reservas de petróleo do planeta

Vários Estados consideram as áreas marítimas do Ártico como águas territoriais e disputam os direitos internacionais de passagem. A Rússia introduziu unilateralmente regulamentos para navegação que outros rejeitam. Os EUA recusam-se a ratificar a Convenção da ONU sobre Direito Marítimo. Enquanto isso, a China declarou-se um “Estado próximo ao Ártico”.

As consequências caóticas dessa corrida desordenada foram vislumbradas na cúpula anual do Conselho do Ártico, em Rovaniemi, na Finlândia. As políticas não vinculativas do conselho, que inclui os países do Ártico e os representantes dos povos indígenas, são tradicionalmente acordadas por consenso. Mas neste ano ele foi sequestrado por Mike Pompeo, o secretário de Estado dos EUA. Ao ignorar o objetivo da reunião de equilibrar os desafios climáticos com o desenvolvimento, Pompeo atacou a Rússia e a China por “comportamento agressivo”, disse que a colaboração não funcionou e vetou um comunicado da cúpula por mencionar as mudanças climáticas.

A polarização do comportamento dos EUA é influenciada em parte pela preocupação de que seja “tarde para o jogo” na corrida pelo Ártico, e que a cooperação russo-chinesa reflita uma ameaça estratégica geral maior. O relatório do Pentágono disse que a Rússia se considera uma “grande potência polar” e apontou para “novas bases militares ao longo de sua costa e um esforço conjunto para estabelecer sistemas de defesa aérea e mísseis costeiros”.

Em abril, a Rússia anunciou um novo programa ambicioso para construir portos no Ártico e outras infraestruturas, e expandir uma frota de navios quebra-gelo. Moscou planeja ainda aumentar drasticamente as remessas de carga. Enquanto isso, o desenvolvimento da China com a Rússia de campos de gás natural, como a península de Yamal, e seus esforços civis de pesquisa foram precursores de uma “futura presença militar chinesa fortalecida” no Ártico, incluindo submarinos nucleares, alertou o Pentágono.

A Marinha dos EUA planeja operações de “liberdade de navegação” no Ártico semelhantes àquelas do Mar da China Meridional, usando ativos da 2ª Frota dos EUA que foi relançada no ano passado para elevar o perfil do país no Atlântico Norte e no Ártico. A Otan, à qual pertencem cinco nações da região, também se interessa cada vez mais pelas “implicações de segurança” das atividades da China, afirmou seu secretário-geral, Jens Stoltenberg. Tudo isso aumenta o risco de conflito.

Atualmente, o principal foco da China não é no poder militar, mas em energia e recursos, por meio de investimentos em países do Ártico. Além do gás natural russo, prospecta minerais na Groenlândia e fechou um acordo de livre-comércio com a Islândia para aumentar as importações de peixe. Refere-se ao Mar do Norte como a “Rota da Seda polar” e fala em ligá-la à iniciativa pan-asiática de Pequim, chamada de “cinturão e estrada”.

Como qualquer outro país, onde houver interesses comerciais da China certamente haverá maior envolvimento militar, de segurança e geopolítico. A competição estratégica das grandes potências, a ganância por recursos, a falta de restrições legais – e o impacto agravante que toda essa nova atividade terá na crise climática – sugerem que a “luta pelo Ártico” do século XXI só pode terminar mal.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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