Mundo
Diário do subsolo
Da periférica Villa 31 à requintada Recoleta, a população enfrenta o purgatório das medidas de Milei


Fim de tarde em Palermo, bairro de classe média. Um homem de cerca de 30 anos caminha com um arame longo, torcido na ponta. Para diante de uma lixeira – em Buenos Aires, estas têm formato quadrado, com tampas que podem ser abertas por um pedal. Nessa tarde, não é necessário acioná-lo, pois há lixo transbordando os limites do baú. Com o arame, ele abre as sacolas plásticas e as separa rapidamente, jogando o conteúdo para fora. Cutuca e revira cada uma. Se encontra resíduos de comida, cartolina, vidros e outros objetos que considera úteis para revender ou usar, vai jogando-os no saco que carrega nas costas. Ao terminar, deixa tudo revirado e segue para a lixeira da quadra seguinte. Não é preciso esperar mais de meia hora até que outro passe pela mesma lixeira e revire tudo novamente para ver se sobrou algum item.
Nas ocasiões em que esses baús não estão tão cheios, é comum ver homens, mulheres e crianças com metade do corpo para dentro, fuçando os resíduos. Alguns andam em dupla. Um deles, geralmente o de menor estatura, literalmente entra na lixeira e vai passando para o que está do lado de fora os itens considerados de algum valor. Eles se mostram resistentes a dar entrevistas ou mostrar o rosto. “Tenho muita vergonha, eu era professora do secundário, daí passei a trabalhar numa ONG, meu marido era comerciante e vivíamos uma vida de classe média baixa, mas sem passar grandes dificuldades. Agora, faço trabalho voluntário de dia e, durante a tarde, ajudo ele a coletar papelão, latas e vidros dos lixões”, diz Luciana Opeda, de 31 anos.
As imagens deprimentes tornaram-se comuns não apenas nos bairros aristocráticos, mas no centro e na periferia da capital argentina. Não são exatamente uma novidade. Desde a gestão anterior, do peronista Alberto Fernández, quando a pobreza beirava os 40% da população, revirar o lixo virou modo de sobrevivência. Hoje, quase um ano após a eleição do ultradireitista Javier Milei, essas cenas são, porém, cada vez mais comuns e não causam susto ou surpresa aos transeuntes, que apenas se desviam um pouco do caminho para evitar ser atingidos pelos detritos.
Milei tem comemorado os números macroeconômicos, como a queda do índice de inflação, em torno de 3,5% ao mês e 100% ao ano, ainda altíssimos se comparados a vários países da região, mas bem inferiores àqueles de antes de sua posse, quando o índice mensal era de 26% e o anual ultrapassava os 200%. Economistas concordam que a redução do índice resulta da derrubada da atividade econômica. A série de ajustes nas tarifas de água, luz, transporte e eletricidade, somada às milhares de demissões em órgãos da administração pública, levou argentinos de todas as classes a gastar menos. E aqueles que já gastavam pouco trocaram os supermercados pelas lixeiras.
Voz baixa. A divisão das forças oposicionistas dificulta a mobilização popular – Imagem: Diego Lima/AFP
A retórica do governo é a de que o mega-ajuste, sem os subsídios que mantinham a qualidade de vida de setores das classes média e baixa, era um remédio duro de engolir. E que, após isso, tudo começaria a melhorar. A população se divide. Milei, apesar do choque, ainda se mantém acima dos 50% de aprovação. Mas é igualmente correto dizer que as pesquisas têm demonstrado uma crescente insatisfação. “Diziam que essa reforma era contra a casta política. Mentira, quem paga, como sempre, são os mais velhos, como depois da crise do ‘corralito’”, protesta Josué Sanabria, aposentado obrigado a manter-se na ativa para sobreviver. A fragmentação da oposição colabora para a falta de uma pressão maior sobre a Casa Rosada. As manifestações ocorrem aqui e ali, mas aquelas que unem a população transversalmente estão relacionadas aos cortes na educação pública, assunto caro aos argentinos. As manifestações acontecem em várias capitais e fazem o governo colocar o pé no freio de vez em quando em sua operação “motosserra”, como apelidou de forma folclórica o corte de gastos.
Desde o início da gestão Milei, cerca de metade dos argentinos está na situação de pobreza, 45% segundo o Indec, o IBGE local. O que cresce de modo alarmante é a indigência, que produz as cenas descritas na abertura desta reportagem. Segundo informações da Pesquisa Permanente de Lares, realizada pelo Indec, enquanto a pobreza varia entre 42% e 45% da população, a indigência aumenta a olhos vistos. De um ano para cá, subiu 11 pontos porcentuais. De acordo com a medição da Universidade Católica Argentina, que faz o mais sério acompanhamento da pobreza, o poder de consumo das famílias caiu 25% nos últimos 11 meses. “Para uma família pobre, a resposta é a queda na indigência. Significa não conseguir, com seu trabalho, suprir os gastos da família num mês, nem mesmo com trabalho informal, por isso a ida aos lixões. Para a classe média, obriga à redução drástica de atividades que costumavam realizar”, diz Eduardo Donza, pesquisador da UCA.
As mesmas ruas de Palermo abrigam lojas de marcas famosas de roupas, com preços agora inacessíveis aos clientes tradicionais. A lojista Amarilis Seixas afirma que a venda de roupas de qualidade caiu muito. “Nos anos 2000, as pessoas caminhavam por Palermo com sacolas, aqui era o local para comprar as roupas da moda”, conta. “Hoje, vem muito pouca gente. Elas migraram, algumas para soluções como os ‘Galpões de Roupa’, onde as principais marcas vendem com descontos, ou diretamente para outlets de bairros como Villa Crespo. Mas até esses têm sentido o impacto da crise.” Nicolas Iotti, um dos lojistas locais, acrescenta: “É uma das primeiras coisas que as pessoas cortam. Estamos tentando abrir próximo aos horários de almoço e jantar, quando mais gente vem ao bairro para comer ou ir ao teatro, mas mesmo essas atividades estão reduzidas e não sobra para uma peça de roupa”.
A classe média, antes predominante, tem sido obrigada a rever os hábitos de consumo
Na classe média, o ajuste no orçamento leva a situações antes inimagináveis. Para piorar, a diferença entre o dólar oficial e o paralelo caiu, o que reduziu a margem de ganho dos anos recentes. “Tiramos as crianças da escola particular e as colocamos na pública. Era o único jeito de não fazer mais cortes radicais. O condomínio, vivemos no bairro nobre da Recoleta, consome atualmente parte essencial da nossa renda. E também preferimos passeios em família ao ar livre, nos parques, do que entretenimentos pagos”, diz Marisu de Michaelis, 48 anos, advogada. Os serviços de assinatura de internet são outro “luxo” eliminado. O cinéfilo Luigi Capponatto, 35 anos, descreve: “Tinha vários, Disney, Mubi, Netflix, Amazon, HBO, Max. Agora estou só com Netflix”. O mais difícil, diz, é deixar de ir ao cinema. “Em qualquer sala, para ver um filme na tela grande, que é como deve ser, você gasta uns 60 mil pesos (257 reais no câmbio oficial).”
O professor de Educação Física Agustin Corcello quer aproveitar o orçamento apertado dos argentinos para fazê-los emagrecer fora das academias. Enquanto a mensalidade das boas academias está em torno de mil reais, ele oferece crossfit, funcional e exercícios específicos em parques públicos pelo equivalente a menos de 350 reais. “Vale muito a pena, mas tenho de aproveitar a primavera e o verão, porque nos meses de frio ninguém aparece.”
Na gastronomia, há um retorno aos “bodegones” ou restaurantes tradicionais, por causa dos preços estratosféricos de casas de sushi, restaurantes tailandeses ou mesmo peruanos de grife, marcas da gentrificação culinária da capital nos últimos anos. Em uma sexta-feira à noite, um grupo de brasileiros ria e se empanturrava no Barcelona, um bodegon no bairro da Chacarita. Por um quinto do preço, comiam mais e, para alguns, melhor do que no estrelado Don Julio, antes uma parrilla comum no bairro de Palermo e que hoje tem reservas apenas para daqui a três ou quatro meses, a preços exorbitantes. “A carne é a mesma e, se vêm aqui, atendemos como atendíamos antigamente, mais uma razão para aparecer”, propagandeia o gerente Manolo Frigerio.
Na maior favela urbana da capital, a Villa 31, uma ruidosa feira ocorre todos os dias, ao redor de um dos bairros mais violentos e onde o narcotráfico circula livremente. Como muitas favelas argentinas, é formada em sua maioria por imigrantes de países vizinhos, como Bolívia, Peru e Paraguai, atingidos em cheio pelo fim dos subsídios de transporte e luz, entre outros. Mas a comunidade é tão informal que os “gatos” garantem fornecimento de eletricidade e tevê a cabo a muitas casas. De resto, é uma das regiões mais vulneráveis da cidade e onde mais gente morreu durante a epidemia de Coronavírus e no surto de dengue do ano passado. Quem vive ali prefere manter sua economia na própria comunidade, como Yeferson, 31 anos, que durante os meses da Covid-19 aprendeu a fazer cerveja e hoje distribui a marca Mugica, em homenagem ao padre morto durante uma das ditaduras argentinas, nos bares locais.
Promessas vãs. Milei prometeu enfrentar as “castas”, mas espeta a conta do ajuste nos lombos de sempre – Imagem: Milken Institute
O governo tenta atrair investimentos estrangeiros e o foco são o setor de energia e a extração de lítio. Também conta com a providência da natureza. Nos últimos dois anos, fortes secas comprometeram a produção de soja, um dos principais produtos de exportação. As eleições de meio de mandato poderiam dar alguma governabilidade a Milei se ele conseguir aumentar sua magra participação no Congresso, a quem culpa por não produzir seu “milagre” econômico.
Por ora, os argentinos esperam. Se isso não der certo, o governo Milei cumprirá a saga tradicional dos políticos argentinos que chegam ao posto: do épico à tragédia. Talvez a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, a quem o “ultraliberal” idolatra tanto quanto Jair Bolsonaro, produza algum efeito na política local e impulsione os mileístas nas eleições legislativas. Mas isso não lhe garante um futuro fácil. Os salários não têm chegado ao fim do mês agora, e a votação parlamentar ainda levará meses. Sua única vantagem neste momento é a divisão na oposição e o fato de a população ter sido avisada de que o remédio seria amargo e sem garantia de cura.
Para o economista liberal Roberto Chachanosky, não há um plano de longo prazo para melhorar a economia argentina, e logo esse modelo mostrará sinais de desgaste. “Uma desvalorização parece inevitável, e duvido que aguentem até a legislativa do ano que vem para realizá-la. Aí os preços voltarão a estar fora de controle e adeus a uma sonhada paridade com o dólar. Um plano econômico sério deveria conter outros elementos, como a verdadeira atenção à atração de investimentos externos”, defende.
Para a maioria dos ouvidos nesta reportagem, a insatisfação está relacionada com uma defasagem entre o discurso e a prática do governo. Na campanha, Milei atacava a casta, sinônimo de “sistema”. Mas a fatura foi enviada à turma de sempre. Em 12 meses, os argentinos sentem-se como se tivessem pulado em uma piscina sem saber se havia água. •
Publicado na edição n° 1337 de CartaCapital, em 20 de novembro de 2024.
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