Mundo
Devo, não nego
Joe Biden corre contra o tempo para evitar o maior calote da dívida pública da história do país


Pandemia, guerra na Ucrânia, ameaça nuclear, inflação, estagnação… Falta alguma coisa? Ah, claro, os Estados Unidos estão diante do risco de uma nova paralisia das atividades públicas, cujos efeitos sobre o mundo seriam severos. O presidente Joe Biden tem uma semana, ou menos, para convencer o Congresso, em particular a Câmara dos Representantes controlada pelo Partido Republicano, a aumentar o teto da dívida, atualmente em 31,4 bilhões de dólares, e evitar um calote de consequências imprevisíveis. Os mais alarmistas falam em crash da Bolsa de Nova York, recessão profunda e uma potencial contaminação da economia planetária semelhante à crise de 2008. Em carta enviada ao Parlamento, Janett Yellen, secretária do Tesouro, expôs a situação sem meias palavras. “A economia estaria repentinamente numa tempestade econômica e financeira sem precedentes”, escreveu. “É possível assistirmos a uma série de quebras nos mercados financeiros.”
O limite do endividamento foi atingido em 19 de janeiro. Desde então, o Tesouro tem recorrido a medidas extraordinárias para pagar credores, fornecedores, servidores públicos e beneficiários de programas sociais. Mas, se o teto não for elevado até 1º de junho, alerta o governo, restará a Biden pronunciar uma velha frase dos caloteiros: devo, não nego, pago quando puder. Na segunda-feira 22, o democrata teve mais uma reunião frustrante com o republicano Kevin McCarthy, presidente da Câmara. Os termos na mesa de negociação são, neste momento, inconciliáveis. O governo quer aumentar impostos dos ricos e bilionários, beneficiados por reduções das alíquotas no passado, para compensar o aumento do limite da dívida, enquanto a oposição defende um programa de cortes de gastos considerado “extremo” pela Casa Branca e que recairia sobre as costas dos pobres e remediados. Não só: os democratas propõem congelar as despesas nos níveis atuais e os republicanos advogam um recuo aos valores de dois anos atrás. “Reiteramos mais uma vez, o calote está fora de questão e a única maneira de avançar é de boa-fé em direção a um acordo bipartidário”, apelou Biden após a reunião. Segundo cálculos do Tesouro, o default provocaria uma queda de 6% no PIB e a destruição de 8,3 milhões de empregos.
Washington adotou o limite de endividamento público em 1917 e, de lá para cá, o teto foi elevado 80 vezes. Houve momentos tensos, como em 2017, durante a administração de Barack Obama, mas nunca antes na história do país o debate sobre a expansão dos gastos deu-se após a constatação de que os cofres estavam vazios. O “Dia X”, como se refere a mídia norte-americana, ficou para trás e restam poucas letras do alfabeto antes do desastre absoluto.
Imprudência. Os republicanos na Câmara dos Representantes dançam à beira do abismo – Imagem: Cheong Wa Dae/República da Coréia do Sul
A situação inédita reflete sobretudo a radicalização do Partido Republicano, cada dia mais refém do extremismo trumpista e do cálculo eleitoral. Embora McCarthy afirme acreditar nas negociações, a base do partido no Congresso rejeita de forma veemente as opções apresentadas pela Casa Branca. “Seria problemático se a maioria se opusesse a um projeto de limite de dívida e McCarthy tivesse de confiar nos democratas. Se a maioria da maioria não estivesse feliz, Nancy Pelosi faria isso? Não”, declarou o deputado Byron Donalds, em referência à ex-presidente da Casa correligionária de Biden. O líder democrata na Câmara, Hakeem Jeffries, criticou os rumos da negociação na noite da segunda 22 e a intransigência dos adversários. Jeffries acusou a oposição de abusar do poder de sua estreita maioria e defendeu a proposta da Casa Branca, que reduziria o déficit ao longo do tempo em 1 trilhão de dólares. “Estamos na direção errada”, lamentou durante entrevista coletiva.
Economistas e analistas financeiros de diferentes correntes acham pouco provável o calote e acreditam em um acordo na undécima hora. Dois pontos devem, no entanto, ser levados em conta no episódio. O primeiro diz respeito à mentalidade neoliberal e fiscalista dominante. Raras são as vozes a apresentar alternativas. Uma delas é Paul Krugman. Em meio ao crescente temor e alta-tensão, o Nobel de Economia sugeriu, no New York Times, a Biden ignorar a “extorsão” oposicionista, emitir títulos da dívida e continuar a operar normalmente. “Nossa crise iminente será totalmente autoinfligida, ou, mais precisamente, infligida pelos republicanos”, escreveu. O segundo ponto é imaginar até quando o trumpismo radicalizado vai continuar a dançar à beira do abismo, contra os interesses da maioria. Quem tem um sistema político tão disfuncional não pode culpar os inimigos externos pela própria decadência.
As consequências de um default são imprevisíveis e tendem a contaminar a economia mundial
Biden, por sua vez, precisa ponderar se e o quanto está disposto a ceder na reta final das negociações. A flexibilidade da Casa Branca terá efeitos de curto e médio prazo. Para os republicanos, o impasse no teto de gastos é só o pretexto para limitar o poder de intervenção da administração democrata em um período decisivo na consolidação das candidaturas presidenciais. Mantidas as atuais condições de temperatura e pressão, os eleitores vão se defrontar, em novembro do próximo ano, com a mesma cédula de 2020. O octogenário Biden (82 anos), que se lançou no mês passado à reeleição, tende a enfrentar o quase octogenário Trump (78 anos), favorito às primárias republicanas, apesar dos inúmeros processos na Justiça. Segundo a média das pesquisas, o ex-presidente leva uma ligeira vantagem sobre o atual, na margem de erro: 44,2% a 42,8%. No império, o futuro é tão sombrio quanto o presente. •
Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.
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