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Destruir e ocupar

O governo de Israel, enfim, assume oficialmente: o objetivo sempre foi se apropriar do enclave palestino

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Limpeza. O novo plano do premier é demolir todos os edifícios e expulsar os 2,1 milhões de habitantes da região – Imagem: Eyad Baba/AFP e Abir Sultan/AFP
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Não há mais subterfúgios. Na segunda-feira 5, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, anunciou um conjunto de ações militares para ocupar de forma definitiva e permanente a Faixa de Gaza e expulsar os 2,1 milhões de palestinos do enclave. Segundo o diário Haaretz, a operação “Carruagens de Gideão” prevê o envio da população para uma área ao sul do território. Nenhuma surpresa. “O mais importante a ser observado é que Bezalel Smotrich, o ministro das Finanças que também é ministro-adjunto da Defesa, fala abertamente a respeito, desde a virada de 2023 para 2024”, ressalta a analista política Dahlia Scheindlin. “Smotrich começou a defender o estabelecimento de um governo militar de forma muito consistente e ficou claro que ele representa comunidades inteiras que têm defendido abertamente qualquer coisa entre reocupar Gaza, anexar Gaza e reconstruir os assentamentos. Não é só a extrema-direita. Mesmo figuras de alto escalão do Likud assumem que esse deve ser o objetivo.”

O plano, de acordo com o blog de ­Barak Ravid, é nivelar Gaza, ou seja, derrubar todos os prédios e enviar a população para uma “área humanitária”. O enclave do enclave ao sul começou a ser preparado no início de abril e é demarcado pelo Corredor Philadelfi, a posição militar israelense na fronteira entre Egito e os territórios palestinos ocupados, e a linha Morag, implementada alguns quilômetros acima, entre Rafah e Khan ­Younis. A alternativa dada aos palestinos seria deixar a Faixa de Gaza de forma voluntária e migrar para outros países. Netanyahu teria afirmado que o plano de expulsão total para fora da Palestina não está completamente descartado. Para tanto, o primeiro-ministro manteria conversas com outros países eventualmente dispostos a receber os refugiados, mas as negociações não avançaram até o momento.

No sábado 3, o exército emitiu milhares de ordens de convocação de reservistas. Shay Tayeb, general israelense, calculou em 12 mil o número necessário de soldados para levar a cabo a operação. A erosão do apoio popular aos ataques a Gaza tende, no entanto, a dificultar o recrutamento.  “O Canal 13 noticiou que, de acordo com uma fonte do exército, no início a taxa de resposta era de 120%, já que muitos se voluntariavam sem sequer receber um aviso de convocação. Agora, é de 75%. Nas minhas conversas com reservistas e oficiais, certamente há unidades com muito menos do que isso, talvez metade”, afirma Scheindlin.

Tareq Abu Azzoum, da rede de tevê Al Jazeera, colheu a opinião dos palestinos sobre o plano israelense. Os entrevistados enxergam a iniciativa “como parte de uma campanha mais ampla de limpeza étnica e deslocamento forçado”. Muitos acreditam que o objetivo de Netanyahu é “tornar Gaza­ um lugar completamente inabitável”. Para os nativos, é previsível a expulsão de suas casas e cidades em direção ao enclave sul, “sendo humilhados com diferentes subjugações do exército israelense”.

Netanyahu prepara a anexação definitiva do território

Outro ponto da operação é um novo enquadramento da distribuição de ajuda humanitária na Faixa de Gaza, controlado por Israel. Na terça-feira 6, o diretor da UNRWA (Agência para a Assistência a Refugiados Palestinos), Philippe Lazzarini, reagiu ao anúncio da “Carrua­gens de Gideão” e condenou o que descreveu como uma “fome produzida politicamente” no enclave. Alguns dias antes de o plano ser revelado, o subsecretário-geral para a Coordenação de Assuntos Humanitários e Ajuda de Emergência da ONU, Tom Fletcher, afirmou que “as autoridades israelenses tomaram a decisão deliberada de bloquear toda a ajuda a Gaza e interromperam qualquer esforço para salvar sobreviventes de ofensivas militares”. O bloqueio total, que completou dois meses e meio, produz fome, deixa civis sem apoio médico, os privam de suas dignidades e esperanças e infligem à população uma punição coletiva cruel. “Bloquear ajuda humanitária mata”, acrescentou Fletcher.

Segundo o mais recente relatório do Escritório de Assuntos Humanitários da ONU nos territórios ocupados, lançado em 30 de abril, “Gaza encara um risco renovado de fome e má nutrição com o bloqueio total”, pois sem suprimentos as cozinhas comunitárias são obrigadas a fechar as portas. O número é impressionante: 91% dos 2,1 milhões de palestinos estão sob risco de fome moderada. Cerca de 345 mil, o equivalente a 16% da população, estão ameaçados de fome extrema. Se hoje a ONU registra cerca de 52 mil mortos, dos quais 15 mil crianças, desde o começo do massacre, em outubro de 2023, de acordo com um cálculo da revista Lancet, o total pode facilmente chegar a 300 mil mortes por meio de ataques diretos e impactos estruturais, como fome e epidemias.

Netanyahu continua a afirmar que o objetivo central da ocupação de Gaza, além de destruir o Hamas, é recuperar os 59 reféns israelenses ainda em poder do grupo palestino. O Fórum das Famílias Desaparecidas e dos Reféns declarou, no entanto, que o novo plano deveria se chamar “Smotrich–Netanyahu” para “abandonar os reféns, a segurança de Israel e a resiliência nacional”.

Ao contrário da firmeza demonstrada em ocupar o território, avalia ­Scheindlin, o que não se encaixa no discurso do governo é a afirmação de que trabalham para resgatar os reféns. “A essa altura não é mais algo que os israelenses, na prática, levem a sério, exceto os apoiadores do governo. As famílias e os defensores de um acordo para a libertação dos reféns já não acreditam nisso.”

A “Carruagens de Gideão” e a consequente limpeza de Gaza só terão início, de fato, após o sinal verde do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O republicano começa na segunda-feira 12 um périplo por países aliados no Oriente Médio. Passará por Arábia Saudita, ­Catar e Emirados Árabes. Um dos temas da agenda são as negociações entre Hamas e ­Israel mediado por terceiras partes. •

Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Destruir e ocupar’

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