Mundo
Desprezo pela vontade popular
Macron é o principal responsável pelo impasse político que paralisa o país


Um presidente que despreza o voto popular foi manchete recente do jornal Libération, em alusão ao filme de Godard. Emmanuel Macron refutou a formação de um eventual governo da Nova Frente Popular, coalizão de esquerda que terminou em primeiro lugar nas eleições legislativas de 7 de julho. No sistema parlamentarista local, é possível a chamada coabitação entre presidentes e primeiros-ministros de orientações políticas opostas, sabendo que o primeiro cargo mantém as representações oficiais e o segundo é que, de fato, governa, de acordo com a maioria da Assembleia.
Para entender a situação, voltemos às eleições presidenciais de 2022. Macron foi confortavelmente eleito no segundo turno contra Marine Le Pen, do Reunião Nacional, de extrema-direita, mas nas eleições legislativas obteve somente uma maioria relativa. Apesar de nomear o governo, só consegue aprovar certas medidas por decreto, como a impopular reforma da previdência, que aumenta a idade da aposentadoria para 64 anos. O governo mostrou-se surdo diante de meses de protestos. A antiga primeira-ministra, Elisabeth Borne, em pouco mais de um ano, foi recordista em decretos que dispensam aprovação parlamentar (artigo 49.3 da Constituição). Até mesmo o orçamento foi aprovado por decreto.
Em junho de 2024, nas eleições europeias, o “partido presidencial” (Macron mudou o nome de sua legenda diversas vezes), chega bem atrás da RN, liderada por Jordan Bardella. A situação é grave, a extrema-direita tem crescido no país no contexto de quatro décadas de políticas neoliberais. Diante disso, a decisão de Macron é bastante incoerente: organizar novas eleições legislativas sob pretexto de “clarificar a situação”.
Todas as mídias tradicionais e institutos de pesquisa (é preciso dizer que na França atual grande parte dos meios de comunicação é dominada pelas maiores fortunas) apontavam para a vitória da RN, mas houve enorme surpresa quando as urnas foram abertas: a extrema-direita cresceu no Parlamento, mas quem chegou em primeiro lugar foi a NFP, ainda que com maioria relativa. A NFP é uma coalizão dos principais partidos de esquerda: socialistas, ecologistas, comunistas e o Movimento da França Insubmissa.
Com efeito, houve, como de costume no país, uma mobilização do eleitorado diante da ameaça da extrema-direita, concretizando um verdadeiro bloqueio eleitoral para eliminar os candidatos da RN no segundo turno. Mas o grupo macronista chegou somente em terceiro lugar, e uma possível aliança com a direita tradicional (Republicanos) também não garante a Macron maioria absoluta. Diante disso, o que decide fazer o “presidente dos ultra-ricos”, como bem definiu a socióloga Monique Pinçot-Charlot? Em vez de nomear um primeiro-ministro da NFP, aproveita as Olimpíadas para manter um status quo, alegando risco de crise institucional. Algo inédito na França.
Macron tenta, por meio de manobras, formar um governo que lhe seja favorável, na expectativa de “quebrar” a aliança da esquerda, alegando o radicalismo da França Insubmissa, o partido de Jean-Luc Mélenchon, que tem se destacado com bons resultados eleitorais, sobretudo nas periferias e na juventude. Quando Mélenchon propôs, para evitar rechaços dos outros grupos, que o novo governo fosse formado pela NFP sem nenhum ministro da França Insubmissa, os adversários revelaram, porém, qual era realmente o problema: a aplicação do programa da Nova Frente Popular. O programa prevê, entre outras medidas ecológicas e sociais, o aumento do salário mínimo de 15% e dos salários em geral, o congelamento dos preços da energia, dos combustíveis e dos produtos de primeira necessidade, a anulação da reforma da aposentadoria e um plano de recuperação dos serviços públicos. Trata-se de medidas urgentes e financiadas por uma reforma fiscal que propõe a taxação das maiores fortunas e dos dividendos e a supressão dos nichos das grandes empresas que acumulam lucros exorbitantes. Não por acaso, a NFP escolheu como potencial primeira-ministra Lucie Castets, funcionária da prefeitura de Paris engajada na luta contra a evasão fiscal e em favor do serviço público.
Talvez a cabeça da atual Quinta República não fique de pé por muito mais tempo
No momento atual, os fundos internacionais defendem um orçamento de austeridade para a França, que deveria ser aprovado até o fim do ano, a despeito da realidade social de aumento considerável do custo de vida e de degradação dos serviços públicos. A crise apontada por Macron revela, na verdade, uma velha tensão de escolhas econômicas, entre o corte de gastos ou, alternativamente, o aumento da arrecadação via reforma fiscal e redistribuição de renda. A aposta das esquerdas francesas é que a segunda alternativa traria, além de justiça social, uma nova dinâmica econômica, embora seja preciso admitir, a coalizão também teria dificuldade de governar com maioria relativa. Poderia contar, no entanto, com o apoio dos movimentos sociais, como foi o caso da Frente Popular de 1936 que inspira a atual: depois de greves massivas, em pouco mais de um ano, o governo aprovou a redução da jornada de trabalho e as férias remuneradas, medidas emblemáticas dos avanços sociais.
Macron também não tem maioria parlamentar e é legítimo questionar se o “centrista” pretende contar com o apoio da extrema-direita para aplicar seu projeto de austeridade econômica. O que decide, no final de contas, Macron ? Escolhe como primeiro-ministro Michel Barnier, um político que não tem nada a ver com o resultado das eleições, homem de direita tradicional, ligado ao partido Republicanos que chegou em último lugar nas eleições legislativas. Com certeza, a figura “escolhida” contará com grande oposição do Parlamento e provavelmente das ruas, havendo grandes chances de o novo governo ser censurado logo nos primeiros dias, como avisa a NFP.
Novas manifestações já são organizadas para o fim de semana. Pela primeira vez na Quinta República,fala-se na possibilidade de impeachment do presidente, ainda que seja institucionalmente remota. A guilhotina foi abolida em 1981 na França, mas talvez a cabeça da atual Quinta República não fique de pé por muito mais tempo. •
*Historiadora, professora na Universidade Sorbonne Paris Nord, parlamentar no departamento de Seine-Saint-Denis, integrante da NFP.
Publicado na edição n° 1327 de CartaCapital, em 11 de setembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desprezo pela vontade popular’
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