Mundo
Déspota das redes
A compra do Twitter por Elon Musk é um risco à democracia e à liberdade que o bilionário diz defender


Contido em 95 páginas de denso jargão jurídico, o aviso do Twitter para Elon Musk foi claro: não use seu poder considerável na plataforma de rede social para atacar a empresa. O homem mais rico do mundo e futuro proprietário da companhia assinou um acordo para a aquisição planejada por 44 bilhões de dólares (cerca de 220 bilhões de reais) e confirmou que ele poderia tuitar sobre o acordo desde que “esses tuítes não depreciem o Twitter ou qualquer de seus representantes”.
Horas depois, o autoproclamado “absolutista da liberdade de expressão” estava, no entanto, envolvido em tuítes que criticavam a direção do Twitter, incluída uma interação com um apresentador de podcast político que rotulou a diretora jurídica da empresa, Vijaya Gadde, de o “principal defensor da censura” na plataforma. A consequência inevitável para Gadde foi um dos fenômenos mais sombrios das redes sociais: um ataque em massa. Os comentários incluíam pedidos para que ela fosse demitida e, num exemplo típico de hipérbole digital desagradável, declarações de que a executiva “ficaria na história como uma pessoa terrível”.
Ao anunciar o acordo para comprar o Twitter, Musk disse: “A liberdade de expressão é a base de uma democracia funcional, e o Twitter é a praça da cidade digital onde são discutidos assuntos vitais para o futuro da humanidade”. O bilionário tem um histórico de tuítes polêmicos, mas seu post sobre Gadde alimentou preocupações em alguns setores sobre a ideia de liberdade de expressão do executivo-chefe da Tesla. Ela vai prejudicar a proteção aos usuários do Twitter contra abusos, cyberbullying e conteúdo extremista? “Acho que a concepção de liberdade de expressão de Musk é contraditória e tola”, disse Jillian York, ativista da liberdade de expressão e autora de Silicon Values: The Future of Free Speech Under Surveillance Capitalism (Valores do Silício: O Futuro da Livre Expressão Sob o Capitalismo da Vigilância). “O absolutismo em uma plataforma como o Twitter não leva em conta os danos muito reais que a rede social pode causar como plataforma global, por exemplo, sendo usado por atores maliciosos como o Estado Islâmico e extremistas de direita.”
A perseguição à diretora jurídica da plataforma mostra o ímpeto destrutivo do bilionário
York acrescentou que há uma diferença entre a ideia de liberdade de expressão incorporada numa plataforma no Speakers’ Corner em Londres e online, onde você pode “gritar no vazio para bilhões de indivíduos”. Ela prossegue: “Plataformas como o Twitter são um animal completamente diferente, e você está falando sobre a capacidade de alguém arruinar a vida de outro em um instante”.
A postagem sobre Gadde produziu uma onda de manifestações de apoio e críticas a Musk, de atuais e ex-funcionários. Um grupo de funcionárias da plataforma, sob o nome @TwitterWomen, postou “as mulheres no Twitter são as melhores de nós”, enquanto o ex-executivo-chefe da plataforma Dick Costolo acusou o bilionário de “fazer de um executivo na empresa que você acabou de comprar o alvo de assédio e ameaças”.
Também há especulações de que Musk permitirá que figuras proibidas voltem à plataforma, entre elas o ex-presidente Donald Trump, que negou que queira retornar depois de sua conta ter sido suspensa permanentemente, em janeiro de 2021. O Wall Street Journal informou, no entanto, que Musk está “consternado” com o fato de Trump continuar banido. O Centro de Oposição ao Ódio Digital, um grupo de campanha americano-britânico, disse que a reintegração de usuários como Trump, a especialista de extrema-direita Katie Hopkins e o fundador da InfoWars, Alex Jones, significaria que as regras de segurança do Twitter “não existem mais”.
O acordo, apoiado pelo conselho diretor, mas ainda a ser aprovado pelos acionistas, levantou preocupações sobre um único dono controlar uma plataforma tão importante. O Twitter é significativo, embora a maioria de seus 217 milhões de usuários diários receba suas notícias em outros lugares. Na Europa, apenas 9% usam o Twitter para notícias, subindo para 12% na América do Norte, 14% no Reino Unido e 35% na África, de acordo com o Instituto Reuters de Estudos do Jornalismo, na Universidade de Oxford. Mas aqueles que usam o Twitter são o equivalente político e midiático dos influenciadores – jornalistas, comentaristas, celebridades e políticos. “O fato de que muitos políticos, indivíduos poderosos e especialistas são usuários frequentes, e que alguns jornalistas incluem o que eles dizem em suas reportagens, significa que o Twitter é claramente uma parte importante de como a agenda política e de mídia é definida”, diz Rasmus Kleis Nielsen, diretor do RISJ. “Nesse sentido, um rico magnata dos negócios como seu dono levanta os mesmos tipos de problemas que indivíduos ricos a controlar meios de comunicação influentes ou outras plataformas de rede social. É uma questão política como cada país quer regular essa propriedade.”
Vale-tudo. Gabbe foi a primeira vítima. O próximo passo de Musk é fechar o capital e retirar o Twitter da Bolsa. A rede social será uma terra sem lei? – Imagem: Twitter Inc. e Spencer Platt/Getty Images/AFP
Não se espera que o acordo enfrente o escrutínio das autoridades de concorrência nos Estados Unidos, mas os políticos começam a abordar a questão da regulamentação da internet e as questões relacionadas à liberdade de expressão. Leis de referência têm sido adotadas no Reino Unido e na União Europeia, e terão um impacto direto na forma da “praça da cidade” de Musk. Em outro tuíte pós-acordo, o empresário reconheceu que a concepção de liberdade de expressão de cada país superaria a sua. Ele escreveu: “Por ‘liberdade de expressão’, quero dizer simplesmente aquilo que corresponde à lei. Sou contra a censura que vá muito além da lei”.
Mas a lei, no Reino Unido e na UE, está prestes a mudar.
No Reino Unido, o governo está introduzindo a lei de segurança online, que impõe às empresas de tecnologia um dever de proteger os usuários de conteúdo nocivo. Parte do conteúdo que ela cobre foi banida por empresas como o Twitter, especificamente postagens consideradas criminosas no mundo offline, como conteúdo terrorista ou de abuso sexual infantil. Exigirá ainda que grandes plataformas como Twitter, Facebook e TikTok lidem com conteúdo “legal, mas prejudicial”. Em outras palavras, postagens que ficam abaixo do limite da criminalidade, mas ainda podem causar danos psicológicos ou físicos. Isso alarmou os defensores da liberdade de expressão (York o chama de “distópico”), mas Musk terá de acatá-lo – o órgão britânico regulador de comunicações, Ofcom, pode multar empresas em até 10% de seu faturamento por transgredir a lei. “Os serviços que operam no Reino Unido estão sujeitos às regulamentações do país. As plataformas online não são diferentes dos serviços de outros setores. Uma vez implementado, o Twitter precisará convencer o Ofcom de que cumpre os deveres de proteção dos usuários”, diz Maeve Walsh, consultora de políticas que atuou na estruturação regulatória por trás do projeto de lei.
Ao mesmo tempo, a UE começou a implementar a Lei de Serviços Digitais, que exige das principais plataformas de rede social mais ações para combater o conteúdo ilegal. Isso inclui forçá-las a permitir que os usuários indiquem esse conteúdo de “maneira fácil e eficaz” para que ele possa ser removido rapidamente. “O Twitter, mesmo de propriedade de Musk, precisa moderar o conteúdo para cumprir as regras da Europa. Se ele quer fazer negócios na UE, isso é um fato”, diz Christel Schaldemose, eurodeputada dinamarquesa e negociadora-chefe da lei.
O Twitter terá de se adaptar à regulamentação crescente imposta pelos governos
Nos Estados Unidos, a moderação de conteúdo tem sido um tema muito debatido há anos entre os legisladores. Embora haja algum apoio bipartidário para reformas, o tema de como e se as plataformas devem ser responsabilizadas pelo conteúdo publicado em seus sites permanece controverso. A Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações de 1996 atualmente isenta as plataformas de responsabilidade pelo conteúdo postado por outros. Tanto Trump quanto o presidente Joe Biden declararam seu apoio a uma reforma da Seção 230, embora por razões diferentes. Os republicanos alegaram, em grande parte sem evidências, que as vozes da direita são censuradas, enquanto os democratas dizem que as plataformas hospedam conteúdo prejudicial, desinformação e informação errônea sem sofrer consequências.
Mas os ativistas dizem que reformar ou revogar a Seção 230 pode fazer mais mal do que bem: pode levar as empresas a excluírem grandes faixas de postagens, mesmo que não sejam prejudiciais, por medo de infringir a lei – talvez nesse processo negando a grupos oprimidos uma de suas plataformas mais poderosas. “A Seção 230 é uma lei fundamental para os direitos humanos e a liberdade de expressão globalmente”, disse Evan Greer, diretor do grupo de direitos digitais Fight for the Future (Luta pelo Futuro). “Independentemente do que Musk queira fazer, mudar a Seção 230 tornaria ainda mais difícil para plataformas como o Twitter moderar conteúdo nocivo por meio de uma estrutura de direitos humanos, e mais provável que as plataformas removessem amplas faixas de conteúdo legítimo para evitar litígios.”
No acordo de aquisição do Twitter, há uma taxa de desistência de 1 bilhão de dólares, que pode ser paga por qualquer dos lados, a depender das circunstâncias em que o acordo desmoronar. À medida que fica cada vez mais claro que a implementação de sua visão de liberdade de expressão enfrenta obstáculos significativos, Musk poderá considerar que vale a pena pagar a taxa. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1207 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Déspota das redes”
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