Mundo
Delírio coletivo
O eleitorado norte-americano recoloca Donald Trump, mais rancoroso e ameaçador, na Casa Branca


Foi a desforra de Donald Trump e seus apoiadores. Ou quiçá um delírio coletivo. Ao contrário das pesquisas e dos prognósticos dos cientistas políticos, comentaristas da mídia e palpiteiros em geral, a eleição presidencial dos Estados Unidos acabou resolvida em poucas horas, ainda na noite da terça-feira 5, data em que a maioria dos eleitores do país se dirigiu às urnas. Condenado pela Justiça, réu em outros processos, cada vez mais alucinado e rancoroso, Trump tem na revanche um propósito de vida e de governo. Será, aos 78 anos e em sua segunda passagem pela Casa Branca, o 47° presidente norte-americano. Pelas regras constitucionais, que limitam a dois os mandatos, consecutivos ou não, está proibido de concorrer à reeleição daqui a quatro anos. É um motivo de alívio ou apreensão? Com maioria no Congresso, o empresário terá muito menos entraves para colocar em prática as promessas de campanha, seja em relação aos imigrantes, seja na política externa.
O retorno de Trump é o ápice do realinhamento populista iniciado em 2016. Se naquele ano o republicano atraiu a classe trabalhadora branca e a América profunda, desta vez explorou a insegurança econômica, derivada da inflação renitente que tomou corpo durante a pandemia de Covid-19, e a demonização dos estrangeiros. Aos red necks devotos do líder se juntaram trabalhadores negros, hispânicos e jovens. Mesmo sob um cenário de alta rejeição, processos de impeachment, duas tentativas de assassinato, condenações criminais em Nova York e a liderança da insurreição em 6 de janeiro de 2021, o magnata deu um passeio na adversária do Partido Democrata, a vice-presidente Kamala Harris. Até o fim da tarde da quarta-feira 6, quando esta reportagem foi editada e a apuração dos votos seguia seu curso, ele havia conquistado mais do que os 270 delegados necessários para garantir a sua nomeação no colégio eleitoral. Carolina do Norte, Georgia e Pensilvânia foram os primeiros estados-pêndulo (ora democratas, ora republicanos) a dar a vitória ao ex-presidente em uma disputa acirrada, 51% a 48% nos três. Wisconsin foi a cartada final, na manhã de quarta: 49,7% a 48,8%. Não bastasse, Trump liderava em quatro dos cinco estados ainda sem a apuração concluída.
Não foi, no entanto, preciso esperar. Às 2 e 20 da madrugada, Trump discursou para apoiadores como vencedor. Reafirmou a promessa de “consertar” a fronteira e prometeu deslanchar uma nova “era de ouro”. Também se mostrou surpreso com a liderança nos estados decisivos. “Olha o que aconteceu. Isso é loucura? É uma vitória política que o nosso país nunca viu antes.” E citou o slogan de campanha: “É uma vitória magnífica para o povo americano que nos permitirá tornar a América grande novamente”.
Os republicanos fizeram maioria no Senado e também podem levar a Câmara dos Deputados
Os republicanos fizeram a barba e o cabelo até a conclusão desta reportagem e talvez façam o bigode. A legenda roubou dos democratas a maioria no Senado e caminhava para dominar a Câmara dos Deputados. Segundo Larry Diamond, cientista político e sociólogo da Universidade de Stanford, a vitória republicana no Senado era prevista e, embora o cenário pareça sombrio, nem tudo está perdido para a futura oposição. “Tudo indica que eles devem conquistar a Câmara, mas, evidentemente, serão disputas acirradas, com margens estreitas, e por isso podem levar dias ou semanas para contar votos suficientes para determinar qual partido vencerá.”
Logo após perder os três primeiros estados decisivos, o copresidente da campanha de Harris, Cedric Richmond afirmou em comunicado à imprensa que nada estava perdido e que ainda havia votos para contar. “Ainda temos estados não apurados. Vamos continuar a lutar para garantir que cada voto seja contado, que cada voz seja ouvida.” Autoengano. Tudo mudou poucas horas depois e, até as 16 horas da quarta 6, a candidata derrotada não havia se manifestado publicamente. A democrata teria, no entanto, ligado para o adversário e ressaltado a “importância de uma transferência pacífica de poder” e de ele se portar como “um presidente para todos”, relatou a rede de tevê CNN.
Ao contrário de 2020, quando o resultado só viria a ser confirmado quatro dias após o fechamento das urnas, a contagem deste ano foi concluída mais rapidamente pelo fato de a votação antecipada pelos correios ter sido menor e pela melhora dos métodos de verificação das cédulas. De qualquer maneira, como de praxe, a recontagem será realizada. A etapa final da eleição está marcada para 6 de janeiro, quando os integrantes do Congresso se reúnem para validar os votos no colégio eleitoral. A posse acontece no dia 20.
Enquanto o mundo tenta decifrar os resultados das urnas, os norte-americanos avaliam que a eleição sem precedentes foi um divisor de águas para a democracia do país. Em todos os sentidos. Trump havia sido condenado criminalmente quando a corrida eleitoral estava em curso. Depois, um debate presidencial desastroso forçou a desistência do atual presidente, Joe Biden, em favor de Harris, primeira mulher negra e filha de imigrantes a postular a Casa Branca. Nesse intervalo, Trump sobreviveu a duas tentativas de assassinato e, em uma decisão acachapante, a Suprema Corte mudou as regras sobre imunidade presidencial. Bilhões de dólares em anúncios de campanha saíram do bolso do atrabiliário Elon Musk e dos tec-bilionários do Vale do Silício direto para os cofres republicanos, embora o recorde de arrecadação tenha sido batido por Harris. Foram centenas de comícios, um amontoado tenebroso de gafes, ameaças, ataques xenófobos e sexistas, apoios decisivos e alguns significativos não endossos.
Incontestável. Trump venceu Harris no voto popular, no colégio eleitoral e no Senado. E pode levar a Câmara – Imagem: Christian Monterrosa/AFP e Brendan Smialowski/AFP
A gangorra durante seis meses provavelmente explica parte da dificuldade de os institutos de pesquisas terem captado as reais inclinações do eleitorado. Nas últimas semanas, sondagens insistiam em refutar qualquer favoritismo, como um verdadeiro espelho de uma nação rachada ao meio. Sete dias antes da abertura das urnas, John Zogby, pesquisador e estrategista, garantiu que “qualquer um que dissesse que sabia o que iria acontecer estaria realmente mentindo”. “Se você olhar para as últimas três ou quatro pesquisas, Trump pode liderar por um, Harris pode liderar por um. Isso é irrelevante. Essas vantagens estão em qualquer lugar entre 0,3% e 1,4%. E essas não são vantagens, são empates.” Desde 1988, acrescentou, a diferença de gênero é examinada de perto pelos institutos de pesquisa e há um fato: os homens votam no Partido Republicano e as mulheres votam no Democrata. E, embora o fator economia tenha sido a questão principal da campanha neste ano, os dois eleitores que tiveram o poder de decisão foram movidos por outras questões.
Para as mulheres jovens, eleitorado que Harris tentou atrair ao longo da corrida, as prioridades estavam nesta ordem: direitos reprodutivos, mudanças climáticas e o conflito em Gaza (e o apoio dos EUA a Israel). No caso de Trump e de seu vice, JD Vance, o olhar voltou-se para o eleitor homem, jovem, branco, solteiro e sem filhos. “Eles sabem que o boné vermelho MAGA é coisa de homem jovem. E é para isso que sua retórica é treinada. É para isso que seus anúncios são direcionados. É para isso que seu alvo é direcionado. É aqui que estão seus votos. E é isso que torna esse ciclo eleitoral realmente fascinante.”
Nesta campanha, mais do que qualquer outra, avalia Zogby, ficou claro que as eleições não devem ser tratadas apenas como uma disputa política, mas como uma guerra cultural. “É uma revolução impulsionada pela tecnologia que está mudando todos os aspectos de nossas vidas. Isso é tão grande quanto a revolução do feudalismo ao industrialismo e capitalismo, exceto que uma levou centenas de anos. Agora acontece em tempo real. E causa muita desorganização de uma só vez. Estamos em uma fase de reavaliação de todas as nossas instituições, não apenas partidos políticos e de governo, mas mídia, agências sem fins lucrativos, e há muita desconfiança.”
Será o teste definitivo para as instituições e a democracia dos EUA
A volta do ex-presidente ao Salão Oval é um aval nunca visto dos norte-americanos ao estilo autoritário, inculto e farsesco de um presidente. Quais os riscos para os direitos individuais e as instituições? André Pagliarini, professor de História e Estudos Internacionais na Universidade Estadual da Louisiana, acentua que a ideia de que o Partido Republicano passa por uma fase populista e turbulenta, mas logo voltará à tradição moderada se desfez por completo. “Há uma certa ironia nesse estágio. Por um lado, milhões de norte-americanos que não se sentiram contemplados pelas políticas tradicionais enxergam em Trump uma liderança forte, positiva e genuína. Isso, em tese, poderia fortalecer a democracia na medida em que esses candidatos se investissem do sistema vigente em vez de declarar guerra contra ele. Mas não se sabe ao certo se esse eleitorado se sente mais atrelado a uma persona ou ao sistema político que possibilitou o seu sucesso. Se for a primeira, a democracia segue em perigo.”
Para o professor, a ideia de que o desgaste perante a classe trabalhadora seria neutralizado pelo apoio maciço entre os universitários, por exemplo, precisa ser urgentemente repensado pelo Partido Democrata. “A única esperança no curto prazo é uma oposição dura contra os possíveis excessos de Trump, o que é bem possível, mas menos plausível do que no pós-2016.”
Fosse um assunto interno, seria uma lástima, mas restrito aos eleitores norte-americanos. O pior é que as decisões ou omissões de Trump afetam todos os continentes do globo. Veremos qual o tamanho do estrago que o ex-presidente conseguirá produzir em quatro anos. Como vimos no Brasil, dá para destruir muita coisa. •
Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Delírio coletivo’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.