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Dedo no gatilho

Os rumos do conflito na Faixa de Gaza após a breve trégua entre Israel e o Hamas

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Lampejos de humanidade. As imagens do reencontro de famílias em Israel e na Palestina tomaram o lugar das cenas de destruição, barbárie e desespero – Imagem: Fadel Senna/AFP e Exército de Israel/AFP
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Sob a mediação do Catar e a pressão dos respectivos aliados, Israel e o Hamas ofereceram ao planeta uma réstia de esperança durante seis dias. As cenas de carnificina e destruição foram substituídas, de um lado e de outro, por imagens de reencontros familiares. Os relatos comoventes preencheram os espaços nos jornais, sites e tevês. Houve emoção para todos os gostos, das crianças israelenses abraçadas ao cachorro de estimação à jovem Marah Bakeer, palestina de 24 anos que não via a mãe desde os 16, quando foi presa sem motivo pelas forças de segurança israelenses. Bakeer não era o único caso: dos 150 palestinos libertados como parte do acordo, 98 haviam sido detidos sem nenhum tipo de acusação formal. Ainda assim, a mídia ocidental insiste em tratar casos semelhantes de maneira diferente. Os judeus em poder do Hamas são chamados de reféns, os palestinos não passam de “prisioneiros”.

Os efeitos positivos da trégua parecem estimular os avanços na negociação de um cessar-fogo, apesar de o Hamas lembrar a todo momento que seus militantes permanecem “com o dedo no gatilho” e de o exército israelense dar com uma mão e tirar com a outra – o clima de terror na Cisjordânia permanece, sob aplauso dos colonos judeus. Segundo relatos da rede de tevê Al Arabiya, na terça-feira 28, centenas de jovens palestinos foram presos nas cidades de Beitunia e Kafr Ain, a oeste de Ramallah. Houve ao menos duas mortes. Um dos principais jornais de Israel, feroz crítico de Benjamin Netanyahu, o Haaretz informou que o primeiro-ministro não estaria disposto a prolongar a suspensão dos ataques para além do domingo 3, embora nos termos iniciais do acordo tenha prometido um dia de trégua a cada dez novos reféns libertados. Diplomatas envolvidos nas discussões declaram-se, no entanto, otimistas. Parte desse otimismo apega-se à disposição do Hamas de liberar homens e militares, não só mulheres e crianças, como nos últimos dias. “Temos esperança de poder prolongar o cessar-fogo por mais tempo, até chegarmos ao fim total e completo. Estamos prontos a libertar mais reféns em troca dessa extensão”, garantiu Ghazi Hamad, integrante do gabinete político do Hamas.

Com a imagem interna abalada pelo apoio incondicional à reação desproporcional do governo Netanyahu, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, tem enviado sucessivos recados a Tel-Aviv. Em uma mensagem na plataforma X, o antigo Twitter, Biden praticamente pediu o fim do conflito. “O Hamas desencadeou um ataque terrorista porque nada teme mais do que israelenses e palestinos a viver lado a lado em paz”, escreveu. “Continuar no caminho do terror, da violência, da matança e da guerra é dar ao Hamas o que ele procura. Não podemos fazer isso.” O tuíte relança ainda uma ideia relegada a segundo plano por Washington, a solução de dois Estados, a coexistência soberana entre Israel e a Palestina. Bastaria a vontade tardia do presidente dos EUA para ressuscitar um arranjo vitimado pelo conflito a caminho de completar dois meses?

Enquanto se manifestava pelas redes sociais, Biden enviava Anthony Blinken, secretário de Estado norte-americano, a um novo tour, o terceiro desde 7 de outubro, por países do Oriente Médio em busca de uma solução administrativa para a Faixa de Gaza se e quando as tropas israelenses decidirem deixar o enclave. Uma das propostas na mesa é a gestão compartilhada de nações árabes vizinhas, reunidas em um consórcio para a reconstrução do território. “Trabalharemos para nos basearmos nos princípios que estabeleci em Tóquio há algumas semanas, para o “dia seguinte” em Gaza, e para encontrarmos os passos que nós e os nossos parceiros podemos tomar na região agora para lançar as bases para uma justiça e paz duradoura”, declarou Blinken na escala em Genebra. A um ano das eleições presidenciais, Biden sente o peso de suas escolhas de afogadilho. O democrata perdeu apoio substantivo de eleitores tradicionais do partido, especialmente jovens e não brancos. Nas mais recentes pesquisas, aparece atrás do republicano Donald Trump no ­cômputo geral e em cinco dos seis estados decisivos na disputa. Trump tripudia: chama o adversário de “frouxo” e “covarde” e se declara o único capaz de resolver problemas geopolíticos dessa magnitude.

Resta ainda convencer Netanyahu e seus aliados de extrema-direita. Até agora, a dinâmica do conflito mostra que Tel-Aviv condiciona o comportamento de Washington e não o contrário.

O premier israelense opera entre forças antagônicas e maneja seus próprios interesses, a despeito dos alertas do aliado preferencial. O governo de união nacional aprovado após os ataques do Hamas de 7 de outubro é uma sobrevida ao contestado primeiro-ministro, mas, em igual medida, o obriga a prestar contas a representantes de parcelas da sociedade israelense defensoras de um cessar-fogo definitivo e de novas eleições internas. Ao mesmo tempo, depois de prometer exterminar o grupo armado palestino e ocupar por tempo indeterminado a Faixa de ­Gaza, Netanyahu ficaria em maus lençóis se mudasse radicalmente de discurso e aceitasse um acordo definitivo com os “terroristas”. Qual realidade vai se impor? Em meio a turvas negociações e múltiplas possibilidades, só uma coisa parece cristalina: o fim do conflito marcará o fim do reinado de Bibi, o mais longevo líder político desde a criação do Estado de Israel, em 1947.

A interrupção dos ataques das forças israelenses ao menos deu às autoridades palestinas uma pausa para dimensionar os estragos. Em entrevista à rede de tevê Al Jazeera, o prefeito da Cidade de ­Gaza, Yahya al-Sarraj, descreveu a destruição. “Estamos agora a descobrir quantos danos foram infligidos à infraestrutura, nos centros culturais, nas bibliotecas e nas praças públicas. A sede do município foi duramente atingida por dois ataques. Milhares de documentos importantes de valor histórico acabaram destruídos”, afirmou Al-Sarraj. “Os danos são inacreditáveis em toda a cidade. Cerca de 60% das unidades habitacionais e apartamentos… esses apartamentos não são habitáveis neste momento.” A isso se chama de terra arrasada.

Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.

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