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De volta ao pó
As múltiplas frentes de batalha abertas por Israel estão alinhadas aos interesses de Washington


Quando Israel decidiu dizimar a Faixa de Gaza, em resposta aos ataques do Hamas em 7 de outubro do ano passado, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu anunciou dois objetivos para justificar a violência: destruir o grupo islâmico e resgatar os reféns. Um ano depois, nenhum deles foi alcançado. Dos 251 israelenses capturados, 101 ainda permanecem desaparecidos, sob o controle das forças palestinas. A respeito do Hamas, a organização “Dados de Localização e Evento de Conflitos Armados” (ACLED, na sigla em inglês) lançou no domingo 6 um relatório no qual estima a morte de 8,5 mil (Tel-Aviv fala em 17 mil) dos 25 mil a 30 mil combatentes. Baixa expressiva, mas longe de representar o fim da milícia. O texto conclui: “Ainda que o Hamas não tenha mais a capacidade ou o desejo de governar uma Gaza destruída, retém a capacidade de continuar a lutar um conflito de baixa intensidade”. Além disso, “a presença e as operações persistem na Cisjordânia”. Em resumo, “o futuro da Palestina muito provavelmente incluirá o Hamas”.
Dahlia Scheindlin, analista política e pesquisadora de opinião pública em Israel, diz que a questão específica de Gaza ainda divide opiniões internamente, em especial o tema dos reféns. “O país não conseguiu se unir em serviços memoriais para o 7 de outubro, o que simboliza a contínua ferida aberta, ao menos por conta dos sequestrados, o que está conectado à política de guerra em Gaza.”
Se o governo israelense não atingiu seus dois objetivos oficialmente declarados em Gaza, e ainda lida com contradições internas, o primeiro ano de operações ganhou forma como efetivação de uma mudança na distribuição demográfica no território, configurando crime de genocídio (há um caso adjudicado desde dezembro de 2023, da África do Sul contra Israel, na Corte de Haia). Na última consolidação de dados do Escritório da ONU para Assuntos Humanitários dos Territórios Ocupados (OCHA-OPT), de 2 de outubro, contavam-se 41.689 palestinos assassinados por Israel. Além disso, 495 mil estão no pior nível de insegurança alimentar, ou seja, passam fome, 1,9 milhão, 90% da população de Gaza, foi obrigada a se deslocar, 68% das áreas de cultivo estão danificadas e cerca de 60% dos prédios residenciais viraram escombros. Nos últimos dias, Israel aumentou o volume de operações no norte de Gaza. De 5 a 7 de outubro, segundo a OCHA-OPT, quatro novas ordens de evacuação foram emitidas, o que afetou cerca de 70 mil habitantes. Chris Gunness, porta-voz da UNRWA, agência dedicada à assistência social a refugiados palestinos, disse na terça-feira 8 que “Gaza foi transformada em um matadouro em escala industrial”.
Reconfigurar o mapa do Oriente Médio interessa tanto a Israel quanto aos EUA
Um encontro entre o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, e seu homônimo israelense, Yoav Gallant, estava marcado para a quarta-feira 9, no Pentágono. No dia anterior, uma reportagem do jornal Haaretz revelou, no entanto, que a viagem havia sido adiada por Netanyahu, por conta de “discussões entre os dois países em relação ao Irã e a oposição dos EUA a um ataque israelense à indústria petrolífera iraniana”. O motivo do adiamento foi revelado como parte do desejo do primeiro-ministro de aprovar o plano de ataque antes da partida de Gallant.
O (des)encontro é mais um episódio de uma relação entre dois países cujos efeitos, muitas vezes catastróficos, são analisados no embate entre as seguintes posições: a Casa Branca oferece apoio relutante e mesmo a contragosto às ações israelenses, que mexem com uma estabilidade desejada e, portanto, são contraproducentes ao interesse estratégico. Ou então os dois governos coordenam ativa e diretamente passos operacionais e objetivos políticos na região do Oriente Médio. Ou em termos mais mundanos: é o cachorro que abana o rabo, ou é o rabo que abana e guia o cachorro?
Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental, analisa da seguinte forma: “Tendo a pensar que os dois países têm um objetivo comum em minimizar o papel do Irã na região, que ambos sentem que seria diminuído com a derrota do Hezbollah no Líbano e do Hamas na nação palestina”. Nesse quadro, o que teríamos, eventualmente, são discordâncias de estratégia e tática, mas não qualquer conflito de interesses.
Flagelo. Quase meio milhão de palestinos passam fome. “Matadouro industrial”, define a UNRWA – Imagem: Omar Al-Qaattaa/AFP
Por um lado, o apoio dos EUA a Israel manifesta-se no suprimento de armas. Em setembro, Israel assegurou uma liberação de compra equivalente a 8,7 bilhões de dólares, destinada a fortalecer o Domo de Ferro, de acordo com a agência Reuters. Em agosto, entre outros equipamentos, o Departamento de Defesa fez o requerimento para a venda de 50 jatos F-15.
Israel, ao abrir uma frente de batalha contra o Líbano e, consequentemente, o Irã, reconfigura a relação de forças na conflagração regional. Prashad atribui o movimento a um esforço de Netanyahu de mudar a “natureza do conflito, do genocídio contra os palestinos para uma guerra ‘ocidental’ contra o Irã, com o conflito tornando-se civilizacional”. De fato, no sábado 5, Netanyahu declarou que Israel “se defendia em sete frentes contra inimigos da civilização”. As sete frentes eram o “Hezbollah apoiado pelo Irã no norte, o Hamas em Gaza, os houthis no Iêmen, ‘terroristas’ na Cisjordânia e as milícias xiitas no Iraque e na Síria”. Na prática, o primeiro-ministro atrelava os EUA às possibilidades de escalada de ataques israelenses a países do Levante e do Golfo Pérsico. No domingo, o gabinete, de acordo com o Haaretz, “enfatizou que as ações israelenses contra o Hezbollah criam uma oportunidade de mudar a realidade no Líbano para melhorar a estabilidade, segurança e paz em toda a região”.
As palavras de Netanyahu não eram só uma promessa, mas também um canto para os ouvidos de oficiais norte-americanos. O jornalista israelense Barak Ravid revelou que oficiais estadunidenses enxergavam a morte de Hassan Nasrallah, em 27 de setembro, e o enfraquecimento do Hezbollah como oportunidades de eleger um novo presidente no Líbano não alinhado ao grupo xiita. Ainda de acordo com Ravid, dois oficiais da Casa Branca afirmaram que quebrar o impasse sobre a eleição do presidente libanês é a prioridade número 1 e deveria ocorrer “antes de um esforço por um cessar-fogo entre Israel e o Hezbollah”. Ou seja, mudar o regime é mais importante do que interromper a matança. Nas duas últimas semanas, de acordo com a Al-Jazeera, a ofensiva terrestre acompanhada de bombardeios israelenses causou cerca de 2,1 mil mortes de libaneses e tirou 1,2 milhão de suas casas.
Derrotar o Hezbollah tornou-se mais importante do que parar a matança em Gaza
Um documento revelado no fim de julho expõe tanto a lógica que guia a estratégia dos EUA quanto argumentos que podem transformar a forma de Washington fazer guerra em um futuro próximo. Em 29 de julho, foi lançado o relatório “Comissão Sobre a Estratégia Nacional de Defesa”, estudo bipartidário encabeçado por Jane Herman, ex-congressista democrata, e Eric Edelman, subsecretário de Defesa no governo de George W. Bush. O relatório critica a atual estratégia militar norte-americana, que estipulava que seu exército deveria estar pronto para lutar “uma grande guerra por vez”, enquanto se fiava em aliados e forças residuais para responder a conflitos. Ou seja, a atual escalada e os desejos de mudança de regime estadunidense/israelense se encaixam na atual lógica de ação do Pentágono. A comissão sugere, no entanto, um novo conceito de doutrina militar. Em vez da estratégia de uma guerra por vez, o constructo da “Força em Múltiplos Teatros”.
Hector Luis Saint-Pierre, analista de política internacional e professor da Unesp, aponta que os três grandes múltiplos teatros dos EUA são o Oriente Médio, onde se encaixam as atuais ações israelenses, a Eurásia, com centro de gravidade na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia, e o Indo-Pacífico, centrado na disputa da China com Taiwan. “Os EUA não têm condições, hoje, de levar adiante confrontos nessas três frentes, mas estão se preparando para, em 2026, enfrentar essa guerra.” Palestina e Líbano estão, portanto, em um dos nós estratégicos para os militares dos EUA. “Essas fissuras são como erupções que vão explodir e dividir países que os EUA enxergam como amigos, como Israel e europeus, e inimigos, como China, Rússia, Irã e Coreia do Norte. Temos de estar atentos, pois não há vozes racionais chamando para a paz. Basicamente, preparam-se para a guerra.” •
Publicado na edição n° 1332 de CartaCapital, em 16 de outubro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De volta ao pó’
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