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De volta ao clube

O pária Bashar al-Assad rumo à reabilitação no Oriente Médio

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Na moita. Assad participa discretamente de eventos públicos, ao mesmo tempo que busca refazer as pontes com os vizinhos. A produção de drogas sintéticas na Síria preocupa a região – Imagem: Presidência da Síria/AFP
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Caminhando por Aleppo, no mês passado, Bashar ­al-Assad não parecia um homem sustentando o destino de uma nação. Enquanto posava para fotos com os moradores, que faziam fila para encontrá-lo a inspecionar os danos do terremoto que devastou partes do norte da Síria, Assad parecia mostrar tanto alívio quanto preocupação pelas vítimas. O sorridente líder do país parecia perceber que, finalmente, havia chegado um momento.

Poucos dias depois do desastre, chefes de ajuda internacional clamavam por uma audiência e pediam ao presidente sírio permissão para atender as comunidades mais atingidas fora do controle do governo. Organismos globais estavam mais uma vez tratando Assad como o líder soberano de um Estado unificado. Em poucos dias, também os vizinhos da Síria, como ministros das Relações Exteriores dos Emirados Árabes Unidos, da Jordânia e do Egito, e autoridades de outros países árabes viajaram a Damasco para uma audiência, sob o pretexto de oferecer condolências. O simbolismo alimentou, no entanto, uma mudança sísmica de outra natureza.

Pela primeira vez em mais de uma década de guerra e caos, ao longo da qual Assad foi um pária aos olhos de seus rivais regionais, ele agora era cortejado como uma solução para a crise que lhe valeu esse título, em primeiro lugar. O homem que presidiu a desintegração de seu próprio país, o exílio de metade de sua população e uma ruína econômica quase inigualável em qualquer lugar do mundo nos últimos 70 anos, claramente fez um retorno. Uma visita de Estado, em 20 de fevereiro, a Omã, com tapetes vermelhos, carreatas e ruas embandeiradas, reforçou sua volta. A readmissão da Síria na Liga Árabe provavelmente ocorrerá ainda neste ano, consolidando a reabilitação de Assad. “Isso demorou muito para acontecer”, disse uma figura da inteligência regional, que não quis ser identificada. “Não se podia mais argumentar que a região estava mais segura com a Síria encorajada a permanecer vilã.”

O que se espera de Assad, ou que influência política seus amigos renovados podem ter sobre ele, permanece incerto. Sabe-se que autoridades dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita pressionaram duramente sobre duas questões: afastar a Síria da influência iraniana e impedir a exportação de grandes quantidades da droga Captagon, nome comercial do estimulante sintético cloridrato de fenetilina, para os países vizinhos.

Em março do ano passado, o governante de Dubai, xeque Mohammed bin Rashid al-Maktoum, e o presidente dos Emirados Árabes Unidos, xeque ­Mohammed bin Zayed Al Nahyan, prepararam o cenário para a mudança em curso, convidando Assad para uma visita informal aos Emirados. Ambos explicaram o que se espera de Assad, posicionando-o como um líder rebelde que poderia ser convidado a voltar ao rebanho, se mudasse de atitude.

Um ano depois, pouco parece ter mudado, exceto nas atitudes regionais. Uma indústria de drogas apoiada pelas instituições mais importantes da Síria continua a transformar o país num narcoestado, rivalizando com o cartel mexicano de Sinaloa na escala de envolvimento do Estado. Com as receitas da exportação generalizada de pílulas caseiras próximas de 6 bilhões de dólares – valor que rivaliza com seu Produto Interno Bruto –, parece haver pouco no horizonte econômico que possa afastar os líderes sírios de tal bonança. No mês passado, funcionários dos Emirados interceptaram 4,5 milhões de comprimidos de Captagon escondidos em latas de feijão. As autoridades italianas, entretanto, ordenaram a detenção de um cidadão sírio, Taher ­al-Kayali, a quem acusaram de coordenar um carregamento de 14 toneladas do estimulante, com destino à Líbia e à Arábia Saudita, em 2020. A polícia italiana diz ter certeza de que as drogas vieram da Síria e podem estar ligadas ao grupo militante xiita Hezbollah, apoiado pelo Irã.

Vizinhos cortejam o líder sírio, para afastá-lo da influência do Irã

Durante uma recente viagem à Jordânia, o secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, foi fortemente instigado pelo monarca do país, rei Abdullah, a pressionar Assad para interromper o comércio de Captagon, que oficiais de inteligência regionais e ocidentais acreditam estar sendo orquestrado por seu irmão mais novo, Maher al-Assad, e facilitado principalmente por meio da 4ª Divisão do exército sírio, sob seu controle direto. Abdullah também enfatizou o papel das milícias iranianas no comércio de drogas no sul da Síria, que tem colocado problemas formidáveis para as forças de fronteira da Jordânia e agora também oferece um comércio lucrativo no Iraque. Exatamente como Assad poderia se afastar do Irã, quando continua tão central para sua sorte, permanece um ponto discutível. Essa demanda foi ainda mais obscurecida na sexta-feira 10 por uma détente surpresa entre Riad e Teerã, que estiveram em desacordo durante os anos pós-Primavera Árabe, nos quais Síria, Líbano e Iêmen foram frequentemente campos de batalha para guerras travadas por seus representantes.

O fato de Assad ter chegado ao ponto de reabilitação deve-se em grande parte ao apoio que recebeu do Irã, que usou a insurreição contra ele para consolidar uma cabeça de ponte na Síria, através da qual pôde aprofundar seu apoio ao braço mais importante de sua política externa, o Hezbollah no Líbano.

Privar o líder sírio das armas do Irã, em tal contexto, seria quase existencial para um de seus principais fiadores. “Não é um risco que ele possa correr”, disse a autoridade regional. “Os Emirados e os sauditas não pensaram nisso.”

Outra exigência feita a Assad – negociações sérias com a oposição síria para chegar a uma solução política e encorajar o retorno seguro dos refugiados – parece igualmente duvidosa. Mesmo durante os anos mais sombrios da guerra, em que Assad foi duas vezes salvo da derrota por seus partidários, as discussões com grupos de oposição nunca foram levadas a sério e quaisquer acordos entre os dois lados se concentraram sobre em que parte da Síria as comunidades derrotadas deveriam ser exiladas. As diversas reuniões apoiadas pelo Ocidente e pela Rússia em Genebra e Astana, no Cazaquistão, desde 2013, não conseguiram gerar um movimento real, e as exigências de compartilhamento de poder político não criaram raízes. A brutalidade e o medo têm sido usados para reforçar o estado policial de ­Assad, em grande parte com impunidade. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves. 

Publicado na edição n° 1251 de CartaCapital, em 22 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De volta ao clube’

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