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De volta a 1973

Ao revogar o direito constitucional ao aborto, a Suprema Corte dos EUA voltou-se contra a vontade popular

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De volta a 1973
Reação. A decisão provocou numerosas manifestações de repúdio pelo país. Apenas 36% da população defendia a derrubada do precedente que assegurava às mulheres direito à interrupção da gravidez. O apoio aos juízes da Corte constitucional despencou. - Imagem: Tayfun Coskun/Anadolu Agency/AFP e James O’Keefe
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Caminhando da Suprema Corte dos EUA até o Capitólio, segurando no alto uma placa que dizia “Meu corpo, minha escolha” e “É direito das mulheres escolher”, Taylor Treacy não conseguia entender como tinha menos direitos constitucionais naquele momento do que quando ela acordou, de manhã. “É de partir o coração”, disse a jovem de 28 anos, que trabalha com marketing esportivo. “As pessoas que fizeram abortos legalmente são principalmente mulheres negras e pardas, mas os cinco juízes capazes de dar a palavra final foram quatro homens poderosos e uma mulher branca. Estamos permitindo mais acesso a armas, mas estamos tirando os direitos das mulheres. Parece que estamos retrocedendo.”

Milhões de mulheres acabavam de perder o acesso ao aborto na sexta-feira 24, após o mais alto tribunal dos EUA revogar uma decisão de quase 50 anos e outros precedentes que consagravam esse direito. O juiz conservador Samuel Alito escreveu na opinião majoritária do tribunal que a decisão do caso Roe vs. Wade, que permitiu o aborto, era “extremamente errada e profundamente prejudicial”, e que os estados deveriam decidir se limitam ou criminalizam o procedimento. “Com pesar – por este Tribunal, mas mais pelos muitos milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma proteção constitucional fundamental –, discordamos”, respondeu a minoria liberal da Corte. Prevê-se que a decisão levará à proibição do aborto em cerca de metade dos estados americanos.

A decisão, embora amplamente esperada por um esboço de parecer que vazou no mês passado, foi de todo modo um impressionante abalo secundário da presidência de Donald Trump, e certamente inflamará as divisões dos EUA. Cimentou ainda o surgimento da Suprema Corte como centro alternativo de poder que ameaça romper o delicado equilíbrio de governo entre Executivo, Legislativo e Judiciário.

Agora, apenas 25% dos norte-americanos confiam no tribunal, nas mãos de radicais juízes conservadores

Apenas 24 horas antes, os juízes haviam derrubado os limites impostos pelo estado de Nova York ao porte de armas escondidas em público, abrindo caminho para novas contestações jurídicas a outras leis estaduais sobre armas, apesar dos recentes massacres na Califórnia, em Nova York e no Texas. Foi um triunfo para o lobby das armas e um golpe nos esforços de Joe Biden para conter a violência.

“A democracia americana está em sérios apuros. Não pode sobreviver em sua forma atual se a Constituição for manipulada para impor o domínio das minorias”, escreveu o historiador Simon ­Schama no Twitter. As decisões consecutivas foram fruto de uma longa campanha dos conservadores para deslocar o Judiciário para a direita, impulsionada por grupos influentes como a Sociedade Federalista e a Fundação Heritage. Os ex-presidentes republicanos George H. Bush e George W. Bush nomearam para a Suprema Corte Clarence Thomas, John Roberts (seu atual presidente) e Alito. O déficit democrático começou quando os senadores republicanos bloquearam o último indicado por Barack Obama ao tribunal, Merrick Garland, alegando que era um ano eleitoral. Em seguida, Trump, presidente de um só mandato que perdeu a votação popular nacional por 3 milhões, nomeou três juízes: Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Este foi, ao cabo, o seu legado mais importante.

O tribunal derrubou o precedente do Roe vs. Wade contra a vontade de um presidente democrata, do Congresso controlado pelos democratas e dos cidadãos. A maioria dos americanos (61%) acreditava que o caso deveria continuar sendo a “lei da terra”, e apenas 36% apoiaram sua derrubada, segundo o grupo de pesquisas Public Religion Research ­Institute. Até mesmo os americanos mais religiosos queriam a manutenção.

Herança. Trump mudou a correlação de forças no tribunal, que também passou a defender o lobby das armas nos EUA – Imagem: S.Craighead/Casa Branca

“Agora temos o ramo menos democrático do Estado em uma agenda ideológica para reverter as liberdades que são extremamente populares entre o público em geral nos EUA”, critica Edward Fallone, professor associado na Escola de Direito da Universidade Marquette em Milwaukee, no Wisconsin. “É uma receita para possíveis distúrbios, pois eles parecem decididos a seguir um rumo que vai contra a vontade do público.”

A onda de ativismo judicial derrubou tanto a Casa Branca quanto o Congresso. Em ­Washington, manifestantes pelo direito ao aborto se aglomeraram diante da Suprema Corte cercada na sexta-feira 24, em frente à cúpula reluzente do Capitólio, onde seus representantes eleitos expressaram frustração pela morte de Roe, mas eram impotentes para intervir. A 3 quilômetros de distância, na Casa Branca, até o presidente parecia politicamente impotente. Um grupo solene de funcionárias, incluindo a conselheira de política interna, Susan Rice, e a secretária de imprensa, Karine Jean-Pierre,­ se reuniram sob uma escada no corredor transversal para assistir Biden dar uma resposta. Retratos de Bill Clinton e George W. Bush, presidentes em uma época em que Roe parecia consagrada, eram vistos em paredes opostas.

Chamando-o de “um dia triste para o tribunal e para o país”, Biden resumiu a situação. “Foram três juízes nomeados por um presidente – Donald Trump – que estiveram no centro da decisão de hoje de derrubar a balança da justiça e eliminar um direito fundamental das mulheres deste país”, afirmou. “Não se enganem: esta decisão é o cume de um esforço deliberado ao longo de décadas para perturbar o equilíbrio de nossa lei. É a realização de uma ideologia radical e um erro trágico da Suprema Corte”. E acrescentou: “Com esta decisão, a maioria conservadora da Suprema Corte mostra o quão radical é, quão distante eles estão da maioria deste país. Eles fizeram dos EUA uma exceção entre as nações desenvolvidas do mundo”.

O presidente admitiu que não pode tomar medidas para garantir o direito de escolha das mulheres. A única esperança é que o Congresso restaure as proteções de Roe vs. Wade­ como lei federal, o que depende da vitória dos democratas nas eleições de meio de mandato. “Neste outono, Roe está no voto”, disse. “As liberdades ­pessoais estão no voto.”

O pior legado de Trump talvez seja a nomeação dos juízes que fazem valer a vontade da minoria reacionária

Outros argumentam que há outra solução para contrabalançar a regra da minoria: expandir a Suprema Corte para além do número atual de nove juízes. O grupo de pressão ­Demand Justice apontou as decisões desta semana sobre armas e sobre aborto como prova de que a reforma é necessária. “Isso faz parte da agenda republicana de décadas para realizar através da Suprema Corte o que eles não conseguem pelos ramos democraticamente eleitos do Congresso. Vimos nos últimos dias decisões que tornam mais difícil para os legisladores combater a violência armada após alguns dos piores massacres na história do nosso país. Vimos, agora, a reversão do direito ao aborto”, afirma ­Christopher Kang, cofundador e conselheiro-chefe da entidade. “Essas coisas são apoiadas por 70% a 80% da população americana, e acho que veremos isso novamente na próxima semana, em um grande caso sobre se a Agência de Proteção Ambiental tem ou não autoridade para tomar medidas de combate às mudanças climáticas, outra coisa apoiada por 70% a 80% da população americana.”

A fé dos norte-americanos na Suprema Corte caiu para um mínimo histórico, com apenas 25% dizendo ter “muita” ou “bastante” confiança nela, contra 36% um ano atrás, segundo uma pesquisa Gallup. Kang acredita que reconstruir a confiança é crucial para a saúde da democracia cada vez mais frágil dos EUA. “A decisão de hoje mostra que o problema é a Suprema Corte e, portanto, qualquer solução tem de abordá-la”, acrescentou. “Há outras coisas que o presidente ou o Congresso poderiam fazer com maiorias maiores, mas fundamentalmente temos que consertar o tribunal se tivermos alguma esperança de resolver esses problemas.”

Os apelos ganham uma urgência ainda maior por causa do que pode estar por vir. Thomas escreveu em uma opinião concordante na sexta-feira que a Suprema Corte deveria reconsiderar outros precedentes legais que protegem relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, igualdade no casamento e acesso à contracepção. Biden alertou: “Este é um caminho radical e perigoso a que este tribunal está nos levando”.

“É a dominação de uma minoria de extrema-direita que busca reverter os ganhos da comunidade LGBTQ, das mulheres, das pessoas negras”, avalia Cristina Tzintzún Ramirez, presidente da NextGen America, organização que trabalha para engajar jovens eleitores. “Não derrotamos o fascismo em 2020, nós o repelimos. Mas matar o fascismo neste país vai exigir muito mais que um ciclo eleitoral.”

A decisão da sexta-feira 24 deve criar uma colcha de retalhos de leis de estado para estado. Vinte e seis deles com certeza ou provavelmente proibirão o aborto de imediato, segundo o grupo de pensadores Guttmacher Institute. No ­Alabama, as três clínicas de aborto do estado pararam de realizar o procedimento por medo de que os provedores fossem agora processados sob uma lei de 1951. As mulheres na sala de espera na manhã de sexta-feira foram subitamente mandadas embora. Governadores estaduais democratas, no entanto, prometeram fortalecer as proteções.

De volta à Suprema Corte, o sol estava brilhando, mas o clima era de desafio sombrio, enquanto centenas de pessoas agitavam cartazes, gritavam slogans como “a Suprema Corte é ilegítima” e contemplavam um salto para o desconhecido depois de meio século. Aos 43 anos, Tracy Tolk, ativista da mudança climática, não conheceu nada além de Roe durante toda a sua vida. “Estou absolutamente devastada”, disse. “Achei que doeria menos porque tivemos uma prévia, mas doeu mais do que eu esperava. É angustiante. As pessoas marcharam ao Capitólio por menos que isso.”

Infantaria. Nomeados pelo republicano, Amy Coney Barrett, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh agora ameaçam se inssurgir contra os direitos da comunidade LGBTQ – Imagem: Pool/Getty Images/AFP

Virginia Shadron, de 71 anos, administradora acadêmica aposentada de Stone Mountain, na Geórgia, usava um broche com o rosto da falecida juíza liberal Ruth Bader Ginsburg, cuja morte em 2020 permitiu que Trump apressasse a nomeação de Barrett mesmo com uma eleição presidencial em andamento. “Milhões de mulheres morrerão. Isso atrasa as mulheres, e é apenas o começo. Em seguida, eles vão atacar a contracepção”, avalia. “Pessoas racionais podem ter uma opinião forte e diferente sobre o aborto. Estou feliz por mim mesma, nunca tive que fazer a escolha, mas se precisasse gostaria de um procedimento seguro e legal.”

Havia tristeza nos olhos de Maureen John, de 67 anos, que alertou que a decisão levará ao aumento de abortos inseguros. “Sou enfermeira e já vi muitas mortes desnecessárias por causa dos abortos ilegais”, diz. John nasceu na Guiana, mudou-se para os EUA em 1976 e vive em Atlanta, na Geórgia. “Sou do Caribe, vim para cá e me tornei cidadã americana por causa da democracia, que não existia no meu país naquela época. Adoro ser americana, e agora estou decepcionada. Estão zombando da democracia.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “De volta a 1973 “

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